Países que violam direitos humanos permanecem imunes a processos em tribunais de outros países

Dissertação da USP analisa argumentos contra e a favor da imunidade dos países nos casos de violações de direitos humanos

Palácio de Justiça, em Roma, sede da Corte de Cassação da Itália. Fonte: Sergio D’Afflitto

Por Artur Zalewska – artur.zalewska@gmail.com

Durante a 2ª Guerra Mundial, o italiano Luigi Ferrini foi deportado para a Alemanha e forçado a trabalhar em uma fábrica de munições. Em 1998, Ferrini entrou com um processo contra a Alemanha em um tribunal na cidade de Arezzo, na Itália, pedindo reparações pelos abusos de que foi vítima durante a guerra.

No entanto, Ferrini esbarrou em um problema: a imunidade estatal, antiga regra do direito internacional que impede que tribunais de um país julguem processos contra outro país. Tanto o tribunal de primeira instância como o tribunal de apelações decidiram que Ferrini não poderia processar a Alemanha nos tribunais italianos devido à regra da imunidade estatal.

Ferrini, contudo, não se conformou com essas decisões e apelou à Corte de Cassação da Itália, o mais alto tribunal do país, insistindo que tinha o direito de processar a Alemanha. Cabia agora à Corte de Cassação responder a uma pergunta que muitos outros tribunais e juristas já tentaram responder: a imunidade estatal continua válida mesmo em casos de violações de direitos humanos?

É essa pergunta o foco da dissertação de mestrado de Guilherme Bonácul Rodrigues, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Nesse trabalho, intitulado State Immunity and Human Rights Before National and International Courts, Rodrigues analisa decisões judiciais e argumentos de juristas favoráveis e contrários à tese da prevalência da imunidade estatal mesmo nos casos de violações de direitos humanos.

A resposta que cada tribunal ou jurista dá à pergunta, segundo Rodrigues, depende do método utilizado para analisá-la. Diferentes formas de análise geram respostas diversas à questão. “Tentei demonstrar em meu trabalho que as diferentes posições sobre o problema revelam concepções teóricas diferentes sobre o direito internacional e diferentes metodologias de determinação do conteúdo do direito e de interpretação e aplicação desse direito”, diz Rodrigues.

A Corte de Cassação discordou dos tribunais inferiores e decidiu a favor de Ferrini em 2004. Segundo a decisão da Corte, a imunidade estatal não deve ser observada em casos de violações de direitos humanos. Ferrini poderia, afinal, processar a Alemanha nos tribunais da Itália. “A Corte de Cassação Italiana afastou a imunidade de jurisdição alemã e declarou que os tribunais italianos teriam jurisdição sobre o caso”, explica Rodrigues. Após essa decisão da Corte de Cassação, o processo voltou a ser julgado pelos tribunais inferiores e a Alemanha acabou condenada pelos tribunais italianos – mas se recusou a pagar a indenização.

A decisão no caso Ferrini faz parte de um movimento recente de alguns tribunais, explica o pesquisador. “A possibilidade de se afastar a imunidade de jurisdição de um Estado estrangeiro em razão de graves violações de direitos humanos foi um movimento que começou nas cortes gregas e italianas, sobretudo em casos ligados a violações de direitos humanos ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial”, diz Rodrigues. “Na minha opinião, o caso Ferrini é o mais emblemático desse movimento.”

O consenso atual

A tese encampada pela Corte de Cassação no caso Ferrini permanece minoritária. A posição que prevalece em tribunais ao redor do mundo e no entendimento de juristas é a de que a imunidade estatal deve ser aplicada mesmo em casos de violações de direitos humanos.

Uma das principais decisões que corroboraram essa posição foi a sentença da Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso conhecido como Jurisdictional Immunities of the State, decidido em 2012. Nesse caso, a Alemanha processou a Itália, pedindo que a CIJ declarasse sem efeito as decisões de tribunais italianos no caso Ferrini e em outros casos posteriores que haviam ignorado a imunidade estatal da Alemanha.

A CIJ decidiu a favor da Alemanha e não acatou o argumento da Itália de que a imunidade estatal deveria ser afastada em casos de direitos humanos. A decisão ajudou a sedimentar o consenso sobre o tema, especialmente devido ao status da CIJ. “A Corte é uma instituição cujos pronunciamentos são tidos como dotados de grande autoridade e prestígio, além de serem muito influentes”, diz Rodrigues. “Um autor que menciono em meu trabalho chega mesmo a afirmar que os pronunciamentos da CIJ são considerados por muitos como sagrada escritura.”

Palácio da Paz, na Haia, sede da Corte Internacional de Justiça. Fonte: Corte Internacional de Justiça

Uma regra secular

A imunidade estatal, regra observada há séculos, é justificada como uma garantia da soberania e da dignidade dos estados. Uma das explicações tradicionais para a existência da imunidade estatal é a ideia expressada pela frase em latim par in parem non habet imperium (iguais não têm autoridade um sobre o outro).

Com o tempo, foram estabelecidas exceções à imunidade estatal – casos em que um país pode ser processado nos tribunais de outro país. Em casos envolvendo transações comerciais, a imunidade estatal não se aplica. “Em manuais da matéria é comum encontrar a afirmação de que o Estado somente tem direito a esta imunidade nas situações em que ele atua como soberano, praticando atos jure imperii, ao contrário das situações em que o Estado atua como particular, praticando atos jure gestionis”, diz Rodrigues.

Essa distinção, no entanto, causa perplexidade e questionamentos de parte dos juristas quando são levados em conta os casos de violações de direitos humanos, como explica o pesquisador: “Uma violação de direitos humanos pode ser considerada um ato jure imperii? Não seria ilógico não conceder imunidade ao Estado em transações comerciais, mas fazê-lo em relação a violações de direitos humanos?”

Diferentes métodos, diferentes conclusões

Os argumentos usados por diferentes tribunais na análise da questão são o principal foco da dissertação de Rodrigues, que argumenta que diferentes métodos de análise levam tribunais a diferentes resultados. “As diferentes respostas para os mesmos problemas jurídicos escondem conflitos que dizem respeito a diferentes concepções teóricas acerca do que é o direito internacional”, explica o pesquisador.

Ao analisar o caso Ferrini, a Corte de Cassação entendeu que havia um conflito entre a imunidade estatal e a proteção dos direitos humanos: os dois princípios estavam em choque e um deles teria que ceder. A Corte decidiu que a proteção dos direitos humanos deveria prevalecer por se tratar de uma norma de hierarquia superior – no jargão do direito internacional, a Corte entendeu que essas são normas da categoria jus cogens, normas tão fundamentais que não podem ser abolidas por normas inferiores.

Já a Corte Internacional de Justiça adotou uma abordagem diferente. No caso Jurisdictional Immunities of the State, que opôs Itália e Alemanha, a Corte decidiu avaliar se em geral os países costumam afastar a imunidade estatal em casos de violações de direitos humanos – esse tipo de avaliação de decisões anteriores é uma prática comum no direito internacional, no qual frequentemente os tribunais verificam qual é o costume que tem prevalecido no mundo e adotam o costume como regra.

Analisando a prática de diversos países, a Corte estabeleceu que a decisão da Itália não refletia o costume ao redor do mundo. “A CIJ considerou que as cortes italianas estariam isoladas em seu entendimento e que tal exceção à imunidade de jurisdição não teria emergido”, diz Rodrigues. “Ainda, a CIJ entendeu que os crimes em questão perpetrados pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial foram atos jure imperii.”

Além disso, a CIJ não enxergou um choque entre a imunidade estatal e a proteção de direitos humanos. No entendimento da Corte, as normas são de tipos diferentes, que não podem se chocar: a imunidade estatal seria uma norma procedimental, que apenas impede certos tribunais de analisarem certos casos, a proteção dos direitos humanos seria uma norma substantiva. Ao impedir os tribunais italianos de julgarem o caso Ferrini e casos semelhantes, a imunidade estatal não estaria se sobrepondo à importância das normas de proteção aos direitos humanos, mas apenas impondo uma restrição à jurisdição daqueles tribunais.

A decisão não foi unânime, e o juiz brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, membro da CIJ que participou do julgamento, divergiu da maioria dos juízes da Corte e votou a favor da Itália, escrevendo em separado uma opinião dissidente. “Enquanto a perspectiva da Corte nesse julgamento aproxima-se da visão mais tradicional de que o direito internacional é o direito da sociedade de Estados, Cançado Trindade parte da concepção de que o direito internacional é um direito comum da humanidade, cujo objetivo precípuo é a proteção do ser humano”, afirma Rodrigues. “Não é de se espantar, portanto, que suas conclusões tenham sido bastante diferentes daquelas adotadas pela maioria dos juízes da CIJ.”

O futuro do debate

Já houve propostas de juristas para que fosse estabelecido um tratado internacional que afastasse a imunidade estatal em casos de violações de direitos humanos, mas, na opinião de Rodrigues, é difícil que a ideia ganhe força e seja implementada. “Creio que não há incentivos suficientes para que Estados violadores de direitos humanos aceitem se vincular a um tratado internacional que contenha normas com tal conteúdo.”

Quanto aos meios para as vítimas de violações de direitos humanos conseguirem reparações, Rodrigues salienta que não necessariamente o afastamento da imunidade estatal seja a melhor maneira de fazer isso:  “Alguns autores afirmam ser equivocado dirigir críticas aos tribunais que dão precedência à imunidade de jurisdição em detrimento do direito individual da vítima a receber reparação”, afirma. “Para eles, as críticas devem ser dirigidas ao país violador e ao país da vítima, que poderia tentar obter reparações às vitimas por meios diplomáticos.”

Segundo Rodrigues, é baixa a probabilidade de haver uma reviravolta no entendimento predominante sobre o tema no futuro. “Creio que uma mudança no consenso profissional seja muito pouco provável, apesar de haver casos de mudanças bastante rápidas no direito internacional em outras matérias também controversas.”

 

 

 

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