Idolatria: da religião às mídias sociais

Adoração a ídolos tem origem no culto a divindades e acompanha a evolução da civilização até os dias de hoje

"Primeira missa no Brasil", de Victor Meirelles

Por Álvaro Logullo Neto (alvarologullo@gmail); Diego C. Smirne (d.c.smirne@gmail.com); Diogo Magri (dmagri07@gmail.com); Gabriel de Campos (gcampos@gmail.com) e Nelson Niero Neto (nelson.niero.neto@gmail.com)

A idolatria é um fenômeno presente em toda a história humana, visto desde as primeiras civilizações, com diferentes atribuições e significados, mas sempre influente na construção cultural de qualquer sociedade. Hoje, com uma carga majoritariamente positiva, a palavra tem como significado “admiração excessiva” ou “culto que se presta a ídolos”.

Antigamente, a palavra era usada com uma conotação negativa por religiões cristãs, mas desde então ela sofreu uma série de apropriações, midiáticas e mercadológicas, até chegar no sentido pelo qual a conhecemos hoje.

Contexto histórico

Quando o termo foi criado, sua essência era puramente religiosa. “De um ponto de vista cristão, a idolatria é a substituição de Deus, ‘a verdadeira fonte da divindade’, por um objeto, coisa, animal, pessoa ou fenômeno”, conta Victor Vigneron, professor de história e mestre em História Social pela USP. “É, por exemplo, o que os missionários católicos combateram quando se depararam com religiões indígenas na colonização da América”, conclui. Victor explica que o conceito da palavra surgiu no contexto das religiões monoteístas, especificamente da mais antiga delas, o Judaísmo.

Para a crença judaica, o culto a um deus único e exclusivo, superior ao plano terreno, faz com que ele não seja passível de representação em forma material. Portanto, além de não verem sentido em adorar imagens religiosas, os judeus lutam contra essa adoração.

Já na religião cristã, percebe-se algumas diferenças, em virtude de suas várias ramificações. O Protestantismo, por exemplo, é diferente do Catolicismo por não cultuar nenhum santo ou nenhuma representação física de uma santidade. Para um protestante, o ser humano não é bondoso por essência, logo não poderia elevar-se a um patamar divino. As igrejas protestantes, além de serem mais despojadas, procuram usar outros artifícios não materiais, como a música, em seus cultos. “Para um evangélico ou protestante, mesmo nos dias de hoje, o gesto de um católico que venera a imagem de um santo pode ser considerado idolatria e, por isso, é reprovado”, diz o professor.

Apesar disso, o combate à idolatria se perpetuou no Cristianismo, em especial, no Catolicismo. Ao contrário do Judaísmo, buscava uma expansão com o objetivo não só de divulgar sua religião, convertendo mais pessoas, como cercear ao máximo o crescimento de outras crenças. Essa prática católica ganha evidência durante o processo de colonização da América: “Os missionários, responsáveis por espalhar a religião nas colônias europeias, criaram um fenômeno estrutural da Igreja Católica”, conta Vigneron. “Eles entraram em contato direto com os índios, que provocaram espanto por terem uma cultura totalmente diferente de tudo que os europeus conheciam”.

Segundo o pesquisador, esse contato possibilitou que os missionários aprendessem sobre as ferramentas teóricas usadas por aqueles povos ― uma delas é a idolatria, comum nas religiões indígenas. É evidente, portanto, a importância que os símbolos ― representações da idolatria ― tiveram para que o catolicismo se expandisse e conquistasse novos fiéis. As figuras eram, e são, um fator de proximidade e familiaridade do fiel com aquilo que é reverenciado.

Os motivos que levaram a Igreja Católica a condenar a prática de idolatria de outras comunidades são, invariavelmente, políticos, e demonstravam a necessidade da Instituição em identificar adeptos de outras correntes e tentar transmitir a eles sua própria interpretação. Isso porque não era interessante, no contexto de conquista e desenvolvimento da religião católica em novos territórios, que outras crenças fossem cultivadas. Identifica-se, portanto, uma prática sincretista da Igreja, na medida em que ídolos de outras culturas eram apropriados, e, assim, uma releitura que associava os padrões Católicos europeus às religiões americanas era realizada. Estabelecer uma relação entre os ícones adorados por povos distintos àquilo que os colonizadores entendiam por correto é fundamental no processo de conversão de pagãos ao pensamento Cristão.

Esse fenômeno de apropriação da cultura por parte da Igreja ocorreu em diversos continentes e pôde ser melhor notado na América do Sul. A intervenção realizada pelos jesuítas, no Brasil, não foi impositiva. Houve uma tentativa por parte deles em criar uma conexão com os indígenas e dessa forma aproximar ambas as culturas. Apropriando-se da maneira de cultuar adotada pelos nativos, estes foram, aos poucos doutrinando-os através das concepções religiosas características do Catolicismo.

A idolatria esteve quase que exclusivamente atrelada, no período medieval e das chamadas Grandes Navegações, a um contexto religioso. Mas, a partir do século 18, pode-se notar uma mudança, lenta e gradual, de certas atribuições desse fenômeno. É notável um processo de laicização, no qual a Igreja Católica, em diversos segmentos da sociedade, passa a ter cada vez menos expressividade, e em seu lugar, a figura humana passa a ser alvo de adoração popular.

Os grandes governantes da Idade Moderna encontraram-se em estágio de transição. Mesmo tendo sua posição justificada por um caráter divino, conciliava-se a isso a sua forma humana, associada a uma produção artística exclusivamente voltada ao culto de suas imagens. Esculturas, pinturas, peças de teatro e outras tantas representações colocavam os reis como heróis e personagens máximos da nação. Uma das mais emblemáticas é a de Napoleão Bonaparte coroando a si mesmo, enquanto o papa assistia àquilo com a impotência de um subalterno qualquer ao imperador. Aos poucos, o homem tomava o espaço da Igreja.

“Coroação de Napoleão e Josefina”, de Jacques Louis David

Nova perspectiva

O termo idolatria acompanha o processo histórico e passa também por modificações. São agregadas a ele novas atribuições, que acompanham mudanças culturais e socioeconômicas. Idolatrar deixa cada vez mais o sentido religioso, e ganha um sentido mais abrangente, passando a valorizar aptidões e conquistas relacionadas ao sucesso, seja ele material, pessoal ou profissional, alimentado pela cultura de massa. Ainda que a idolatria continue ligada ao fanatismo e, portanto, seja considerada negativa, sua prática não carrega o mesmo peso da época medieval.

Hoje, valorizam-se personagens que apresentam qualidades admiradas pela sociedade, isto é, características tidas como exemplo de sucesso e consideradas ideais de felicidade por aqueles que as veneram. O fenômeno, então, tornou-se volátil: ídolos surgem com maior facilidade e estão sujeitos ao esquecimento da mesma maneira, como explica Alexandre Barbosa, professor de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes: “Nesse ponto de vista, pode-se dizer que há volatilidade, pois o ídolo de um carnaval já não é mais o mesmo nas comemorações de final de ano. Basta um post mal feito, um comentário que gere dupla interpretação para as próprias redes acenderem as tochas da inquisição contra a figura”.

Nesse contexto, as mídias sociais têm desempenhado papel determinante em alavancar personagens ao patamar de ídolos. Atuando como um espaço fértil para a proliferação de conteúdos e capaz de alcançar um número expressivo de espectadores e potenciais fãs, essas plataformas passam a ser uma vitrine pessoal, de fácil e constante acesso. “As redes sociais se estabeleceram como fortes mecanismos de circulação de dados em que são criados ídolos efêmeros”, afirma Barbosa.

Atualmente, a proximidade entre admiradores e ídolos também é maior Imagem: Marcos Riboli (Globoesporte.com)

Por meio dessa relação entre admirador e objeto de admiração, se apresentam as aptidões do ídolo e se possibilita a aproximação com seu público. A internet acentua o efeito que a televisão, o rádio e as revistas propiciaram, pois permite uma interação inédita.

Todo esse processo é alimentado por um sistema econômico que se beneficia da exploração da idolatria. O mercado ora impõe o que deve ser considerado o ideal de comportamento e aceitação pelas massas, ora se apropria de novos valores adotados por elas. A partir daí, transforma figuras que se encaixam nesse perfil a ser alcançado em marcas a serem consumidas pela sociedade a nível global. “O capitalismo demanda histórias de sucesso para manter a ideologia do esforço que merece ser reconhecido, que está na base do sistema. E nada melhor do que criar ícones, ídolos para disseminar essa ideologia”, explica Barbosa.

De acordo com o professor, a indústria cultural precisa produzir o maior número de objetos de consumo com o menor custo possível. Sua estratégia é recorrer ao gosto médio, ou seja, atingir o maior número de pessoas e dessa forma obter o lucro. “A cada ano, não só um novo ritmo, mas todo um pacote de roupas, acessórios, costumes, filmes, lugares, bebidas são vendidos por referências que desaparecem com a mesma velocidade com que foram criadas”.

A partir de sua origem, intrinsecamente atrelada à religião, a idolatria sofreu modificações em sua representatividade e em seu significado. “É natural que, ao longo da história, as gerações desenvolvam diferentes relações com esse fenômeno”, diz Barbosa.

Seja no âmbito antropológico ou cultural, a idolatria se faz presente nos dias de hoje, sustentada por um sistema econômico eficiente e um aparato midiático estruturado para tal. A palavra mudou de forma a se tornar mais ampla, e como conclui Vigneron, “não há garantias de que esse processo não possa ser alterado novamente”.

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