Ex-ministro Paulo Vannuchi dá início ao ciclo Conversações no IEA-USP sobre a ditadura civil-militar

O evento abordou a memória do período e teve como principal pauta a Comissão Nacional da Verdade

Ilustração: Carlos Latuff

Há 32 anos o Brasil dava os primeiros passos na transição para a democracia — ainda que por meio de uma eleição indireta — e encerrava seus anos de chumbo: foram mais de duas décadas de uma ditadura civil-militar. No entanto, ainda hoje as memórias que rondam este período são nebulosas e na luta constante entre memórias oficiais e subterrâneas é difícil romper com o silêncio institucionalizado por tantos anos acerca da tortura e repressão vigentes na época. Na tentativa de superar essa barreira reforçada até mesmo pelos aparatos do Estado, em 2011 a presidenta Dilma Rousseff assina a lei 12528, criando a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que tem por finalidade apurar as violações aos direitos humanos cometidas durante a ditadura civil-militar.

No intuito de promover um debate acerca da gênese da CNV, de seus desdobramentos políticos e das medidas que vêm sendo tomadas pelo Estado desde a entrega do seu relatório final em 2014, o grupo de pesquisas Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória, do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP), convidou, no último dia 13 de junho, o ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos (governo Lula) e atual membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vannuchi, para abrir o Ciclo Brasil 64/85 – Conversações, com o tema A memória da Política e as políticas da Memória – Comissão Nacional da Verdade em pauta. O debate foi mediado por Alessandra Lopes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

A dificuldade do Brasil em criar memórias e reparar danos remonta, na verdade, a episódios ainda anteriores à ditadura. O povo brasileiro ainda não conseguiu mensurar que aqui foi palco de um dos mais duradouros regimes de escravidão, construindo grande parte de suas riquezas a custa do trabalho africano por mais de três décadas. O genocídio indígena tampouco é lembrado. Assim, é compreensível que não tenha se criado uma efetiva memória do período ditatorial. De acordo com Paulo Vannuchi, a Comissão Nacional da Verdade veio justamente em um sentido contrário, buscando resgatar e discutir essas memórias. Ele comenta que a gênese da Comissão está justamente naqueles que persistiram em obter informações sobre os casos de violação na ditadura, não se intimidando pelas portas que se fechavam.

Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Sobre a própria trajetória, Vannuchi afirma que a militância na esquerda é de família, e que desde a juventude esteve envolvido com estes movimentos. Diferente de alguns que lutavam durante a ditadura para instaurar um outro regime autoritário com viés comunista, sua luta era única e simplesmente em nome da liberdade. Enquanto cursava medicina na Universidade de São Paulo, fez parte da gestão do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz e relembra que entrou em greve quando diversos professores da Universidade foram cassados, entre eles o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e essas cassações e perseguições muitas vezes eram motivadas por uma histeria e paranóia injustificadas. Para o ex-ministro, hoje voltamos a experimentar um pouco desta sensação. Por conta de todo seu envolvimento com os movimentos de resistência, em fevereiro de 1971, Vannuchi foi preso e só foi solto cinco anos depois. Ele conta que se envolveu com processos de investigação dos torturadores, e era responsável por escrever listas com os nomes e características destes militares. Relembra da vez em que foi descoberto pelo capitão Maurício Lopes de Lima, o torturador de Dilma Rousseff, com uma lista na qual constava seu nome. O capitão, na época, assistia aulas fardado na Universidade de São Paulo.

Ainda na década de 80, Vannuchi passou a trabalhar com o ex presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, quando foi eleito, o convidou para ocupar o cargo de ministro na Secretaria de Direitos Humanos, proposta que acabou aceitando justamente por poder se envolver e dar prosseguimento aos processos de investigação dos crimes cometidos durante a ditadura. De acordo com ele, já havia alguns projetos iniciados durante o governo FHC.

O trabalho da Comissão se iniciou então com a busca e o contato com as famílias das vítimas da ditadura. “Lula queria abrir tudo, devolver os corpos às famílias”, afirma Vannuchi. No entanto, desde o início, o presidente colocou uma restrição ao trabalho da Comissão: eles cuidariam da apuração e da revelação das informações por meio do relatório, mas não caberia a eles interferir em processos judiciais. Justiça a cargo do Judiciário. O processo de criação e instituição da Comissão também passou por diversos entraves. A ideia inicial era que todos os ministérios assinassem a sua proposta, mas apenas 31 o fizeram, e o Ministério da Agricultura acabou retrocedendo depois de ter concordado com a proposta. Por fim, a Comissão acabou sendo instituída em um grande ato de lançamento. Durante os trabalhos surgiram também algumas dificuldades que Vannuchi caracteriza como uma fase de “cinismo”: as Forças Armadas se recusaram a entregar diversos documentos pertinentes à investigação. Além disso, havia divergências até mesmo entre os membros da Comissão e José Carlos Dias chegou a proferir, em um de seus discursos, que concordava com as premissas da Lei de Anistia, causando grande desconforto para a CNV. Paulo relata que depois de algum tempo, José Carlos acabou mudando de opinião ao tomar contato com as famílias das vítimas.

Em dezembro de 2014, foi entregue o relatório final da Comissão Nacional da Verdade à presidenta Dilma Rousseff. De lá para cá, pouco foi feito a respeito, e por conta da conjuntura política já atribulada naquele momento, a presidenta resolveu não dar prosseguimento às atividades da Comissão.

Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Ao final do debate, diversas questões relacionadas especialmente à atuação da polícia militar e o atual contexto brasileiro foram levantadas, questionando uma possível desmilitarização da polícia e a origem dos discursos de ódio que parecem se alastrar. Quanto à última questão, Paulo pontua que “a onda de intolerância é um horror, mas não é um horror que ela apareça, afinal ela já estava ali acomodada”. É um sentimento ainda não superado, assim como o processo democrático não foi de fato efetivado. De acordo com Paulo, essa fragilidade democrática se expressa até mesmo na esquerda, que muitas vezes tenta passar suas propostas por decreto ao invés de levá-las ao Legislativo. Quanto à desmilitarização da polícia, ele comenta que há alguns pequenos esforços no sentido de uma “educação” militar mais adequada, e que ele próprio já chegou a ministrar cursos de Direitos Humanos em academias de polícia. No entanto, é um movimento ainda muito tímido e não há resultados em grande escala. Questionou-se inclusive se a manutenção de militarização da polícia não seria uma maneira de mantê-la apta para a repressão em momentos de instabilidade como o que enfrentamos agora.

A grande dificuldade que a Comissão enfrenta agora é tentar vencer as barreiras dos conflitos de interesses políticos que entravam a finalização do processo e a reparação dos danos sofridos pelas vítimas e suas famílias. A CNV chegou, inclusive, a solicitar, em 2014, a revogação parcial da Lei da Anistia, para que responsáveis por torturas e homicídios pudessem ser culpabilizados por seus crimes, mas ainda hoje interesses políticos impedem que estas ações sejam levados a cabo. Vannuchi finalizou pontuando que, apesar disso, esta postura do Estado brasileiro não é uma exceção e diversos outros países da América do Sul passaram por situações semelhantes, e José Mujica, ex-presidente do Uruguai, já chegou a afirmar que o mais prudente seria deixar de lado as punições.

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