Alunos considerados indisciplinados ou em cumprimento de medida socioeducativa são estigmatizados nas escolas

Montagem: Iolanda Paz

Em quatro escolas estaduais da periferia de São Paulo, Beatriz Hahne pesquisou a semelhança existente na forma como os alunos considerados indisciplinados e aqueles em cumprimento de medidas socioeducativas são estigmatizados. O estudo deu origem à dissertação de mestrado Sobre a indisciplina e o ato infracional: experiências escolares de alunos e professores, de 2017, que teceu apontamentos sobre a educação desses jovens, problematizando-a e propondo intervenções.

“O modo como a escola olha para o adolescente em medida socioeducativa e para o adolescente considerado indisciplinado é muito parecido”, ela diz. “É o jovem que a escola acredita precisar afastar e provar que já está perdido.” Por meio de uma pesquisa participante e de grupos de reflexão, Beatriz foi a campo conhecer as histórias desses adolescentes e de seus professores para, a partir das experiências deles, conseguir propor intervenções que fizessem sentido para os contextos em que estavam inseridos. “O método foi pensar em conjunto quais eram os problemas e quais as ferramentas possíveis para lidar com eles”, explica.

Beatriz destaca que a maior parte da juventude em cumprimento de medida socioeducativa é composta por adolescentes das periferias e, em geral, negros. Segundo a pesquisadora, os jovens de classe média que cometem ato infracional – o que, para adultos, corresponde ao crime –, não costumam ser apreendidos ou conduzidos à delegacia. “Muitas vezes, o que se sugere ao adolescente da classe média é acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, enquanto que, para o adolescente pobre, é uma questão de judiciarização e controle”, Beatriz problematiza.

Desde 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece medidas socioeducativas para os adolescentes de 12 a 18 anos incompletos que cometam atos infracionais, estando eles sujeitos a cumpri-las até os 21. Existem seis tipos diferentes de medidas: advertência verbal, reparação de danos – sendo que as duas não geram processo –, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida – executadas pelo município –, semiliberdade e internação – executadas pelo estado por meio da Fundação Casa em São Paulo. Nos casos de prestação de serviços na comunidade e liberdade assistida, o adolescente permanece em sua casa, frequentando uma escola da comunidade e fazendo parte da assistência social do território.

Os alunos tidos como indisciplinados nas escolas visitadas, como explica Beatriz, eram aqueles mais contestadores – que questionavam regras que julgavam não fazer sentido, como a proibição do uso da quadra em horários fora de aula –, e também os alunos que faziam brincadeiras consideradas inoportunas, que xingavam ou que poderiam ter atitudes mais violentas, por mais que a pesquisadora tenha tido pouco contato com elas. “Penso que essas situações violentas de fato acontecem, mas o problema é que não se conversa sobre elas”, afirma. De acordo com Beatriz, os professores ficam muito intimidados e enxergam apenas um adolescente violento, não alguém que pode estar querendo contar uma história quando age dessa forma.

“Por isso que falo: temos que ver a história de vida do adolescente antes de ver o ato infracional ou a indisciplina”, diz. Um dos referenciais teóricos da dissertação foi Hannah Arendt, que fala sobre como a violência, em muitos casos, é a maneira pela qual a pessoa responde a situações em que se sente injustiçada ou indignada. Beatriz conta, por exemplo, que um dos alunos costumava questionar sempre que não podia ter aula em razão da ausência de professores, tendo uma vez colocado fogo na cortina de uma sala de aula – forma encontrada por ele para expressar sua indignação, depois de muitas tentativas de conversa.

Beatriz ainda conta que, na maioria das vezes, teve contato com professores que tinham receio de seus alunos a partir de ideias que pré conceberam sobre eles. Porém, quando a pesquisadora conversava com os jovens, eles diziam não se sentir compreendidos nem em casa nem na escola e, por isso, colocavam-se em perigo. Então, eles pensavam que, ao terem atitudes violentas, prejudicavam mais a si próprios. “Até porque o lado deles é mais frágil: se eles são pegos, eles vão ser punidos”, Beatriz esclarece.

É importante também considerar que as escolas da pesquisa estavam em territórios nos quais a violência é cotidiana. São alunos que já tiveram, por exemplo, pessoas próximas assassinadas, e que sofrem violência policial constantemente. “Essa violência que está fora da escola entra nela”, Beatriz afirma. “E, além de tudo, a escola pode ser muito violenta ao ser autoritária e não permitir um espaço de diálogo”, completa. A pesquisadora considera que a violência está muito relacionada às condições sociais e à forma como esses jovens são tratados. “Um adolescente que cresce ouvindo e sentindo que sua vida vale muito pouco não é de se espantar que seja violento de alguma forma”, diz.

De acordo com Beatriz, por mais que a violência aconteça, o modo como ela é vista e entendida também influencia. “Se penso que uma pessoa só pode ser violenta, possivelmente, ela só será violenta.” Assim, faltam figuras que digam a esses adolescentes que a vida deles tem valor. Quando se fala da importância de terem mais acesso à educação, cultura e lazer é no sentido de possibilitar-lhes espaços nos quais as vidas deles possam ser reinventadas. “Esses adolescentes precisam sentir que suas vidas valem a pena serem vividas”, diz.

Em especial na periferia, a escola ocupa um papel bastante central, principalmente por não existir tantos outros equipamentos públicos que os adolescentes possam frequentar e se sentir pertencentes. “A escola é um espaço em que o jovem pode, por exemplo, fazer amizades, trocar experiências, apaixonar-se e dar significado para tudo o que está vivendo”, Beatriz diz. Estudos demonstram que, quando os alunos se afastam da escola, eles se colocam em posição ainda mais vulnerável. Durante a pesquisa, professores contaram a Beatriz histórias nas quais tiveram sucesso em trazer jovens de volta porque se importaram, foram atrás ou falaram com os pais.

Importantes para a individualidade e proteção dos sujeitos, as escolas também enfrentam muitos desafios que estão relacionados às condições de trabalho – extremamente complicadas para os professores. Alguns deles adoecem porque têm de assumir uma carga muito grande de aulas para conseguirem se manter financeiramente. Isso atrapalha uma postura pedagógica mais próxima aos alunos e possibilita, como conta Beatriz, que digam: “Eu não posso me importar com esse aluno porque já tenho outros diversos problemas” ou “Eu não posso conhecer esses alunos porque tenho as matérias para ensinar”.

Theodor Adorno fala da posição desprivilegiada em que os professores se encontram e em como, simbolicamente, isso os destitui de uma postura pedagógica mais presente. “Os professores também vivem situações muito violentas”, diz Beatriz. Desvalorizados, muitos deles passam por um desgaste emocional e físico significativo, além de serem apontados como os únicos culpados quando a escola tem problemas. “O que vejo é uma vontade política para que sejam mal remunerados e não possam qualificar suas práticas”, afirma. Segundo a pesquisadora, os professores do estudo contaram que gostariam de um espaço para serem ouvidos: “Como eles vão lidar com tudo isso se só apontamos o dedo e não falamos sobre?”.

Aproximação educadora

“Se vejo no adolescente alguém que só é um problema, não consigo ser um educador.” Essa é uma hipótese de Beatriz, que, baseando-se em Hannah Arendt, propõe, para os professores, uma postura de aproximação educadora. Em seu amor mundi, Arendt fala sobre a importância dos adultos na conservação do mundo para as gerações seguintes: “Ser um adulto que se importa com a criança e com o adolescente e, consequentemente, que se importa com o mundo”, explica. “Conservá-lo para as pessoas que estão crescendo e que vão cuidar dele também no futuro.” Para Beatriz, essa conservação se dá pela postura de aproximação educadora para com todos os jovens.

“Antes de tudo, tanto os adolescentes em medida socioeducativa quanto os indisciplinados, têm de ser vistos como adolescentes”, diz. Nos grupos de reflexão da pesquisa, como exemplifica Beatriz, os estudantes considerados “mais difíceis” chegavam sabendo que o eram e se comportavam dessa maneira. Entretanto, ao final, e depois de todas as rodas de conversa, tiveram uma postura muito mais amistosa. O que eles falaram para Beatriz foi que sentiam uma grande necessidade de conversar e de serem acolhidos e entendidos.

“Nas escolas, deveria haver muito mais espaços de discussão, de construção coletiva e de debates, para que a educação democrática deixasse de ser um discurso e pudesse ser uma prática”, afirma. Em seu estudo, a pesquisadora formou grupos de reflexão com os alunos para incentivá-los a pensar os problemas da escola. O objetivo final era que propusessem soluções e intervenções: “Partíamos das ideias deles e chamávamos os professores e diretores para ajudar”. Não foram em todas as escolas, porém, que os adultos se engajaram e possibilitaram as mudanças.

Entretanto, Beatriz conta que, nas escolas em que as intervenções ocorreram, foram experiências bastante frutíferas. Em uma delas, por exemplo, os alunos queriam ocupar e utilizar a biblioteca que não estava funcionando. O diretor foi permitindo aos poucos, sem fechar a possibilidade. Ao final, os alunos do segundo e terceiro ano do Ensino Médio limparam-na e arrumaram-na, conseguindo também muitas doações de livros. “Eu entendo que, só quando você se sente pertencente a um espaço, é que você cuida dele”, Beatriz afirma. “Até hoje a biblioteca funciona, e funciona com outros alunos porque aqueles já se formaram”.

2 Comentário

  1. Pesquisa relevante e pareceres altamente técnicos, apropriados e destacados. Que o trabalho da pesquisadora Beatriz Hahne seja amplamente divulgado para a busca na qualidade educacional no país.

  2. Se esse contexto não mudar, a marginalização vai aumentar cada vez mais, mas ao invés de solucionar o problema os governos vivem envoltos em muita corrupção, desvios de verbas, aumentando seus próprios salários, fingindo não enxergar as necessidades básicas da população. O fato é que a educação pública, que já era ruim, piorou de tal forma que hoje pode se comparar ao caos e se continuar assim, vai afundar mais ainda nesse fundão de lama sem fim.

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