Leis brasileiras em saúde mental descumprem mais de 70% dos padrões de Lista de Checagem da ONU

Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP compara as leis de saúde mental do Brasil e da Inglaterra e País de Gales na abordagem da Internação Psiquiátrica Involuntária

Imagem: Reprodução

Não são poucas as falhas e lacunas que as leis brasileiras em saúde mental apresentam. Isso fica ainda mais explícito quando elas são comparadas às leis de países mais avançados na esfera da psiquiatria, como feito por Emanuele Seicenti em sua tese de doutorado. A pesquisa, intitulada Internação Psiquiátrica Involuntária: estudo comparativo das Normas de Saúde Mental do Brasil e Inglaterra/País de Gales, analisou exclusivamente as legislações sanitárias dessas duas regiões, utilizando como base o Livro de Recursos da Organização Mundial da Saúde (OMS/ONU).

A primeira falha observada por Seicenti em sua pesquisa diz respeito à desorganização das leis do Brasil que tratam de saúde mental. Embora a maior parte esteja concentrada na Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216/2001), muitas das leis sobre o assunto ainda estão dispersas em outras partes da legislação de saúde, o que dificulta seu estudo e sua aplicabilidade. Só para a realização desta tese – ou seja, visando apenas à internação psiquiátrica involuntária –, a pesquisadora estudou 12 instrumentos legais brasileiros diferentes. Essa dispersão não ocorre na legislação inglesa, em que toda a jurisdição sobre o assunto é contemplada pela Mental Health Act (Ato de Saúde Mental). Segundo Emanuele, a existência de um único instrumento legal permite que a legislação sanitária inglesa seja muito mais detalhada em relação à brasileira, que é permeada por lacunas e passagens incompletas.

 

Uma das lacunas mais significativas se refere à aplicação de sanções em casos de violação dos direitos do paciente com doença mental. “No tópico ‘Delitos e Penalidades’ da Lista de Checagem da ONU, nossa legislação não cumpre nenhum dos requisitos, enquanto a legislação britânica cumpre com 100% deles. Ela tem uma sanção de delitos, de penalidades, e ela também estipula essas sanções contra as pessoas que violam os direitos que estão na lei”. A pesquisadora também ressalta que, embora nossas leis tragam um rol de direitos maior do que o rol da Inglaterra, a falta de punição para as pessoas e instituições que descumprem esses direitos põe em xeque sua verdadeira efetividade.

Créditos: Ian Alves

O quadro acima explica os diferentes tipos de internação psiquiátrica no Brasil. Para a realização da internação involuntária, é necessária a aprovação de um médico credenciado que declare necessário o procedimento. E, em sequência, o Ministério Público deve ser notificado do ato em um prazo de 72 horas. Mas muitas dessas resoluções legais não se confirmam no campo prático. O estudo de Seicenti se restringe a uma análise legislativa, mas o Brasil é famoso pela negligência com a aplicação de suas leis. Se, no plano teórico, a legislação brasileira cumpre apenas 52 dos 166 padrões da OMS (31,32%), na prática esse número é ainda menor. A legislação inglesa, ainda que bem avançada em relação à do Brasil, cumpre 90 dos 166 padrões (54,2%), número que ainda é baixo.

Mas é preciso fazer ressalvas: historicamente, os casos de violação de direitos psiquiátricos na Inglaterra têm uma repercussão muito maior do que os casos brasileiros. Em 2006, por exemplo, o Brasil foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/OEA) por conta do Caso Damião Ximenes Lopes, em que uma instituição de saúde credenciada ao Sistema Único de Saúde (SUS) violou um sem número de direitos do paciente cearense, que sofreu maus tratos pelos profissionais responsáveis e morreu dentro do hospital psiquiátrico. O governo brasileiro não apenas isentou os culpados pelo crime, como também deixou de cumprir as alterações legais previstas pela condenação da Corte. Esse panorama é completamente contrastante à postura da Inglaterra/País de Gales, que têm o costume constante de preencher lacunas em sua jurisdição após grandes casos de violação dos direitos humanos de pessoas com doenças mentais.

O método comparativo da pesquisa de Seicenti e o embasamento na Lista de Checagem da ONU são, segundo ela, uma “forma de fazer com que a Enfermagem repense suas concepções, seus serviços, sua prática”, afirma. “E esses instrumentos da OMS, eles são muito importantes como forma de nortear o nosso legislador na criação das leis e das políticas de saúde mental; é fundamental que as leis nacionais estejam articuladas com os documentos internacionais de direitos humanos”.

O quadro a seguir traça uma relação entre os padrões não cumpridos pela legislação brasileira, os direitos humanos comprometidos por conta disso e, por fim, as condições de vulnerabilidade resultantes.

Créditos: Emanuele Seicenti e Ian Alves

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