A imagem do Cerrado como construção social

Projeto de pesquisa realizado em parceria entre o IEB e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social analisa como o imaginário sobre o Planalto Central foi construído através de uma perspectiva natural e histórica

Arte: Camilla Freitas

O Cerrado, junto à Mata Atlântica, é um bioma considerado um dos hotspots brasileiros, o que quer dizer que ele possui uma grande diversidade natural e encontra-se ameaçado de extinção. O projeto de pesquisa realizado por André Sicchieri Bailão, intitulado Narrativas e imagens do Cerrado, busca entender a construção do imaginário que se tem dessa paisagem por meio das ciências naturais e da história do Brasil.

Foi através de conversas com sua orientadora Lilia Schwarcz, do Departamento de Antropologia da FFLCH, e com seu orientador de mestrado e atual coorientador do projeto, Stelio Marras, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), que André decidiu realizar um trabalho que mesclasse disciplinas. “Hoje em dia a especialização das disciplinas está um pouco fora de moda. Há mais liberdade e incentivo para transitar entres as áreas.” Segundo Bailão, sua pesquisa só tem a ganhar com isso.

Para entender como se deu a formação do imaginário construído sobre o Cerrado, o pesquisador analisa, dentre outras, algumas missões que foram realizadas para o interior do país e qual a sua influência na percepção que a sociedade tem sobre essa paisagem. Essas missões eram traçadas por “viajantes”, alguns a mando do governo, para mapear o espaço do Brasil Central. Isso ocorreu, principalmente, porque até o século 19 os habitantes das grandes cidades brasileiras e até mesmo o Estado nacional pouco sabiam daquela região, mesmo ela já sendo habitada por populações indígenas, quilombolas, rurais entre outras. Missões científicas já haviam sido feitas  desde o período colonial brasileiro, porém, segundo o pesquisador, a ideia de que o Cerrado era um vazio permanecia. Foi a partir justamente do século 19, então, que missões com intuito científico e econômico para exploração da região começaram a ocorrer com maior frequência.

“Boa parte das ideias da ciência e do imaginário popular educado parte de conhecimentos adquiridos a partir dessas missões. Elas tiveram grande importância na nossa formação sobre o Brasil Central”, conta André. Contudo, segundo afirma, ao estudar o que um cientista natural registra sobre o bioma, não se deve entrar em generalizações, uma vez que um mesmo cientistas podem descrever aquela paisagem de diferentes maneiras. “Não é possível reduzir a ‘esse cientista produziu essa imagem sobre o Cerrado’, pois, geralmente, eles produzem várias imagens sobre a paisagem brasileira, umas boas outras ruins, com vários tipos de caracterizações e classificações”, conta o pesquisador, que afirma tratar-se de algo bem complexo.  

Por trabalhar com os documentos de viajantes, o IEB está sendo muito importante para a construção da pesquisa de Bailão, mesmo que uma parte também se concentre na parceria com o PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social), já que a Biblioteca Brasiliana concentra os documentos originais dessas missões. O pesquisador, no entanto, está abordando em seu estudo apenas os registros de cientistas naturais. “A ideia de focar nos cientistas naturais é que eles me dão a chave para entender como a paisagem do Planalto Central era imaginada pela população urbana do Rio e de São Paulo, principalmente as que tinham ensino superior, o que caracterizava a elite intelectual da época”, explica.

As imagens e o imaginário

A construção do imaginário de uma paisagem passa pela descrição imagética do lugar que se deseja retratar. Com o Cerrado, essa construção foi, segundo o pesquisador, através de alguns vícios de imagens. “As fotografias costumam focar sempre nas árvores solitárias, com campos ao fundo. A ideia de solidão e vazio era muito reproduzida pelas imagens do Cerrado nas missões, principalmente no século 20 com maior acesso à fotografia.”

Em sua pesquisa, porém, o pesquisador não objetiva criar uma grande narrativa para dizer que as imagens são as maiores responsáveis pela concepção que temos sobre o Cerrado. Da mesma forma que, em alguns textos, cientistas abordavam o Cerrado como um vazio, há imagens que representam o bioma como um deserto e há outras que não o representam dessa forma. “Há muitas imagens em jogo”, afirma Bailão.

Brasília no centro do Brasil

A construção da capital brasileira só ocorreu devido a muitas missões que reconheceram e estudaram o território que é conhecido hoje. Assim, segundo o pesquisador, “essas missões foram colocadas no projeto por serem importantes para a ciência brasileira, pois fizeram parte da construção científica da região”. No entanto, em seu projeto, Bailão tangencia a construção de Brasília, mas talvez não aborde o tema na tese, pois entende ela pode ficar muito extensa.

Para ele, a construção de Brasília teve um impacto tanto negativo quanto positivo para o bioma do Cerrado. O projeto da cidade estimulou o desmatamento intenso ao trazer a capital para o centro do País, uma vez que, para levar a administração pública para o Planalto Central, a construção de estradas, habitações, ferrovias, rodovias e todos os projetos de infraestrutura no geral tiveram que ser adotados. Contudo, também vão para região pessoas com ideias de conservação e estas fazem com que surjam os primeiros parques nacionais de Cerrado. “As ideias de conservação, portanto, sempre foram focadas ou em montanhas ou em florestas, e nunca na Savana. Isso muda com a construção de Brasília e com a construção de parques nacionais”.

Das missões aos dias de hoje

Segundo o pesquisador, não há nada de natural em chamar o Cerrado de vazio. Para ele, isso é uma construção social e, portanto, tem uma origem. Com isso, seu projeto tem o objetivo de responder questões como o porquê de o Cerrado ter sido ocupado de uma forma tão brutal, e os porquês de alguns naturalistas e viajantes terem reforçado essa a imagem de vazio do bioma. “Hoje em dia essas ideias são mais contrariadas por grupos ambientalistas e outros movimentos do gênero que tentam mostrar, ao contrário da visão apresentada anteriormente, que o Cerrado é importante para o ecossistema brasileiro”, afirma. “Esse contraste evidencia que nenhuma das duas visões são naturais, pois elas representam parte da história, da construção social.”

 

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