Aborto em casos de malformação de fetos: as diversas facetas de uma decisão

Questões jurídicas e consequências psicológicas envolvidas, além das discussões a respeito de possível eugenia, tornam o debate sobre o tema ainda mais complexo

Ilustração: Fredy Alexandrakis

Por Aline Melo, Fredy Alexandrakis, Iolanda Paz, Laila Mouallem e Mariana Rudzinski

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que, em 2012, o Brasil era o quarto país em número de nascimentos de bebês anencéfalos. No mesmo ano, foi aprovada uma ação que permite o aborto nesse caso específico de malformação. Isso foi possível porque a anomalia — caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana — é incompatível com a vida: os recém-nascidos sobrevivem, no máximo, algumas semanas.

O aborto no país é um fato social e, também, uma questão de saúde pública. A lei que o criminaliza não impede sua prática, como provam os números de internação decorrentes da interrupção da gravidez. Resultados preliminares do estudo Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes regiões, realizado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em parceria com a ONG Ações Afirmativas em Direito e Saúde, mostram que, somente em 2013, foram 205.855 internações que envolviam casos de abortamento, das quais 154.391 foram consequência de interrupções induzidas. Estima-se que o número de abortos provocados seja quatro ou cinco vezes maior do que o de internações, o que levaria a 856.668 casos.

Enquanto isso, dados do Ministério da Saúde apontam, no mesmo período, 1.523 abortos legais — que, necessariamente, se enquadram em uma das três categorias previstas pela lei: estupro, gravidez de risco para a gestante ou anencefalia fetal. Existem também outros casos de malformações cefálicas, como a microcefalia e a acefalia, que não são contempladas pela legislação brasileira.

Infográfico: Mariana Rudzinski

Algumas malformações resultam, assim como a anencefalia, em uma incompatibilidade com a vida, enquanto outras não são tão severas, mas podem levar a transtornos de diferentes graus no desenvolvimento da criança. Ainda que o aborto nesses casos seja controverso, a ONU recomendou, em 2015, que ele fosse descriminalizado também em situações de deficiências consideradas graves.

Legislação atual e nova proposta

O aborto em casos de malformação, a princípio, não está previsto no Código Penal. De acordo com o artigo 128, o procedimento é permitido quando a gravidez representa um risco à vida da gestante ou quando é resultante de estupro, segundo os incisos 1 e 2, respectivamente. Porém, em 2004, uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), que discorria sobre a obrigação de se levar até o fim uma gestação em caso de feto anencéfalo, foi levada em consideração. Essa ação só foi julgada em 2012, quando o aborto passou a ser autorizado nesse caso específico de malformação.

“Realizou-se, na época, uma interpretação conforme a Constituição para dizer que, no caso específico da anencefalia incompatível com a vida extrauterina, seria necessário considerar outros princípios previstos na Constituição”, explica Luciano Correa Ortega, mestre pela Faculdade de Direito da USP. “Dentre eles, a autonomia, a dignidade da condição humana e o direito da mulher de escolher levar a cabo ou não a gestação de um feto que não vai sobreviver”, diz.

Dessa forma, a decisão ficou centrada apenas no feto anencéfalo. Contudo, há uma proposta de reforma do Código Penal brasileiro – o qual é de 1940 – em tramitação no Poder Legislativo. O Projeto de Lei do Senado Nº 236 propõe a inclusão, no artigo 128, de um terceiro inciso que permitiria o aborto nos casos em que a anencefalia ou outras anomalias incompatíveis com a vida extrauterina fossem comprovadas por dois médicos. Além disso, a nova proposta também prevê a possibilidade, por meio de um quarto inciso, de interromper a gravidez por vontade da gestante até a décima segunda semana, desde que atestado por médico ou psicólogo que ela não apresenta condições de arcar com a maternidade.

“Se esse projeto for mesmo levado adiante, pode ser que em um futuro próximo a lei abarque outras hipóteses”, destaca Luciano. Uma sinalização nesse sentido foi o habeas corpus nº 124.306 concedido pelo Supremo Tribunal Federal, em 2016, que revogou a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto na cidade fluminense de Duque de Caxias. Nesse caso específico, foi entendido pelos ministros que o aborto até o terceiro mês de gravidez não era crime, resolução que poderia abrir caminho para promover a descriminalização nesses casos, a partir da aprovação da reforma.

“No caso de pedido de interrupção até a décima segunda semana de gestação seria analisado caso a caso, com o requisito de que a paciente não tenha condições psicológicas de levar adiante essa gravidez”, explica Luciano. Porém, ele destaca que o projeto não estabelece por quais motivos a mulher não teria essa condição: se por questões familiares ou se pelo feto ter alguma malformação, por exemplo. “É um inciso bem ampliado”, afirma. Segundo ele, isso pode causar bastante discussão e ainda ser modificado depois de audiência pública.

Enquanto isso, o que há de seguro é que, no caso de anencefalia, o aborto não é crime. Já em casos de outras síndromes, como a Síndrome de Edwards, é possível entrar com um pedido judicial para interromper a gravidez, mas o judiciário que delibera. Muitas vezes, esse pedido chega a ser deferido pelos juízes – normalmente quando a anomalia se mostra incompatível com a vida extrauterina –, mas nem sempre no melhor tempo para a saúde mental da gestante.

De acordo com Mariana Gondim Mariutti Zeferino, pesquisadora da área de enfermagem da saúde da mulher e psiquiatria pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP, nos casos de malformação, muitas mulheres conseguem permissão da justiça para interromper a gravidez somente quando a gestação já está avançada. “Mas e o sofrimento que elas viveram durante toda a gravidez? Acho que ainda há muitas discussões a serem feitas a respeito do assunto, e que precisam ser travadas com as próprias mulheres”, afirma. “Quem melhor do que elas para mostrar a vivência desse processo?”

Consequências psicológicas

Para sua tese de doutorado, Associações do abortamento com depressão, autoestima e resiliência, Mariana entrevistou 120 mulheres que estavam em situação de abortamento, dentre as quais 57% apontaram para algum nível de depressão: 33% manifestaram distimia — a falta de prazer na vida e o constante sentimento de negatividade —; 22% apresentaram a forma moderada da depressão; e 13%, a grave.

Anos antes, a pesquisadora havia desenvolvido um trabalho fenomenológico de iniciação científica no qual analisou o significado de vivenciar o abortamento para as pacientes. “Independentemente de ter sido espontâneo ou provocado, o abortamento foi descrito como um momento de muita tristeza e perda, de uma dor fisiológica e existencial”, conta. “O sentimento de culpa vinha tanto da mulher que tinha provocado, quanto da que não havia provocado, no caso espontâneo.”

Ainda que, de acordo com a lei brasileira, o aborto seja criminalizado, ele não deixa de acontecer — seja em clínicas ou nas próprias casas das mulheres. A Pesquisa Nacional do Aborto, realizada em 2016 com financiamento do Ministério da Saúde, indicou que, em 2015, 500 mil mulheres fizeram abortos no país. O mesmo estudo calcula que 4,7 milhões de brasileiras já abortaram, e as estatísticas indicam que ocorre um aborto por minuto no Brasil.

“Os abortos clandestinos acontecem a todo momento, seja por medicação ou por algum outro dispositivo. Depois, essas mulheres vão a hospitais: isso é um fato em todas as classes econômicas”, ressalta Mariana. A diferença, segundo a pesquisadora, é que, enquanto algumas mulheres têm a possibilidade de pagar por clínicas mais caras – que oferecem melhores condições de higiene, por exemplo – outras se sujeitam a métodos e locais mais precários.

Tamara Prior, psicanalista e especializada em Medicina Preventiva pela Faculdade de Medicina da USP, também esclarece as consequências psíquicas para a mulher: “Nem a vida, nem a gestação são banais. Há um misto entre o interno e o externo, porque a mulher está carregando um filho”, explica. “Seu psiquismo está totalmente ligado àquilo, então, o aborto é um trauma que perpassa a corporalidade, pela perda de todo o envolvimento narcísico de preservação de uma vida que está dentro dela e que, de repente, é interrompida.”

Segundo Tamara, a culpa pode estar associada à pressão social por causa da interrupção da gravidez, mas não se esgota apenas no moralismo, por ser uma perda muito complexa. “Se não considerarmos o sofrimento dessa mulher e ainda jogarmos uma carga moralista, simplista e acusatória em cima, o problema será multiplicado por dois”, esclarece a pesquisadora.

Em seu doutorado, Mariana notou um aumento muito grande do índice de depressão relacionado ao abortamento. Quando a questão é malformação, a vulnerabilidade e a baixa autoestima se mostram ainda mais profundas. “Essa mulher tem um medo muito grande de ter outra gravidez com malformação”, diz. “Ela precisa de muito apoio para não entrar em depressão.” Apoio que, por sua vez, precisaria vir também dos profissionais da saúde.

Anteriormente, no mestrado, Mariana trabalhou com a visão das mulheres em situação de abortamento sobre o cuidado desempenhado pela enfermagem. Ela constatou que, nos casos de aborto, os profissionais da saúde não realizam um cuidado da paciente em sua totalidade, apenas físico. Ignora-se que essa mulher está vivendo um luto — independentemente de ser um aborto provocado ou não —, e muitas vezes o tratamento é envolto de preconceito.

“Os profissionais julgam essas mulheres. Não há uma neutralidade em relação ao cuidado”, afirma Mariana. “Quando é uma mulher casada que demonstra que gostaria de ter tido o filho, eles tratam de maneira diferente, melhor”, explica. Ainda, nos casos de anencefalia e outras malformações, a equipe sente maior pesar pela paciente e pela família. A pesquisadora ressalta, porém, que faz parte da ética e da deontologia da área da saúde atender todas as pessoas. “O mais importante é estarmos preparados para receber essas mulheres, porque o sofrimento delas é muito grande, independente do aborto ser provocado ou espontâneo.”

Mariana conta que os profissionais que atendiam as mulheres em situação de abortamento nem sempre estavam preparados para dar esse suporte que elas precisavam, principalmente no que diz respeito à questão emocional da perda e do luto. “Acho que o maior desafio é a conscientização dos profissionais — até dos políticos — em relação às ações públicas referentes ao cuidado e à assistência dessas mulheres”, afirma.

Imagem: Every Mother Counts – Caitlin McGauley

Já Tamara destaca o papel do médico no apoio à paciente: a escuta aberta e a disposição para discutir questões que vão além dos dados – caso a mulher opte por continuar uma gravidez de risco – fazem parte de sua função. De acordo com a pesquisadora, o médico deve ser sincero e cumprir seu compromisso com a medicina, explicando as características e consequências no caso das malformações. Mas também precisa se mostrar presente e disposto a ajudar aquela mulher que não se encontra numa situação simples. “É preciso um médico que ouça e esteja lá para apoiar”, diz. “Ele precisa sair do papel de onipotente e ser o cuidador que deveria.”

Para além do suporte de profissionais da saúde, de acordo com Mariana, o amparo familiar é parte importante da recuperação psicológica da mulher que passa por uma situação de abortamento. Segundo a pesquisadora, nos casos de aborto espontâneo, os familiares costumam ter uma postura mais próxima. Já nos casos em que o aborto é provocado, Mariana aponta que a relação com a família é, em geral, diferente: “O estudo mostrou que, muitas vezes, o que levou ao aborto foi a não aceitação da gravidez pelo parceiro ou pela família”, esclarece. Mais especificamente nas ocorrências de malformações, como a anencefalia, a pesquisadora verificou que a família se sensibiliza junto à mulher, sentindo também um grande pesar.

 

Uma questão de eugenia?

Em maio de 2015, o Brasil enfrentou uma epidemia de zika vírus e, em outubro do mesmo ano, o número de bebês nascidos com microcefalia teve um aumento desproporcional. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil, casos de microcefalia e outras malformações fetais foram considerados “potencialmente associados” ao zika, o que levou a pesquisas quanto à relação. De acordo com boletim divulgado pelo Ministério da Saúde, até julho de 2016, houve 1.749 casos, tanto de microcefalia quanto de outras alterações do sistema nervoso, que sugeriram infecção congênita. Em 272 deles, a infecção pelo vírus zika foi confirmada.

A emergência desses casos abriu uma discussão quanto à realização de abortos em fetos com malformações. Argumentou-se que, especificamente para a microcefalia, as mulheres não deveriam ser punidas por falhas das políticas públicas em conter o Aedes aegypti, mosquito transmissor do zika vírus e, também, da dengue. Segundo Luciano, como a microcefalia permite que o bebê sobreviva, esse é um caso de aborto que encontra maior resistência legal – diferente da anencefalia em que a possibilidade de vida extrauterina é quase inexistente.

De acordo com Tamara, uma relação direta e utilitária entre o aborto e os casos de malformação é perigosa, pois pode conter argumentos relacionados à eugenia – ou seja, à teoria de que seria possível selecionar os “melhores indivíduos”, geneticamente falando, para compor uma sociedade. “Percebe-se que é uma ideia que seduz algumas pessoas”, diz. “´Pode levar a pensamentos do tipo ‘esse bebê aqui vai ter uma malformação cardíaca, será que compensa?’”.  

Tamara diz que se costuma pensar que, no Brasil, não houve defensores da eugenia, mas em seu mestrado, ela analisou especificamente as obras do médico Renato Kehl – principal expoente da eugenia brasileira no século 20 (Foto: Reprodução).

Porém, para Tamara, nem sempre é uma questão de eugenia – esse é um risco que teria de ser discutido no campo ético da lei. “A partir do momento em que se tenta definir em quais casos abortar longe da vontade da mulher ou do casal, cai-se em um projeto ou anseio eugenista”, afirma. De acordo com Tamara, a ampliação da legislação teria que ocorrer de maneira a se pensar a mulher.

A pesquisadora acredita ser necessária uma lei que leve as escolhas das mulheres em consideração, uma vez que o sofrimento delas e das famílias pode ser muito grande em casos de malformação. Também considera que nem sempre o aborto é a opção emocionalmente mais adequada, pois tem consequências psíquicas. Se a mãe optar por seguir a gestação, a pesquisadora entende que a medicina e a legislação têm que estar do lado dela, possibilitando que vivencie o luto convencional. “O que não pode acontecer é uma autoridade médica decidir ou concluir pelas mulheres”, diz.

 

 

 

Um fator de grande importância, para Tamara, seria a existência de um sistema mais acolhedor, que deixasse a mulher livre para decidir. Trata-se da necessidade de construir uma rede que leve em consideração questões mais sensíveis, o que ela diz ser deficitário no país. Trazer esses impasses à tona, no entanto, atuam no sentido de complexificar a discussão, saindo da bipolaridade do contra ou a favor e afunilando para questões estritamente individuais, como aponta a pesquisadora. “A questão não é proibir, nem conscientizar violentamente; é trabalhar em várias frentes para o sim ou para o não.”

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