Violência institucional se faz presente nas relações de emprego

A prática dentro das empresas e a falta de um responsável para fiscalização relativiza e perpetua esse tipo de violência

Ilustração: Basilicofresco

Por Beatriz Arruda, Camilla Freitas, Giovanna Querido e Isabel Marchenta

Seja nas escolas, hospitais, prisões, instituições públicas ou empresas privadas, a violência institucional está presente em cada um desses lugares. Praticada dentro das instituições, é um exemplo de violência legalizada, pois é perpetuada pelos próprios agentes e usuários, segundo afirma Sergio Kodato, coordenador do grupo de pesquisa Observatório de Violência Institucional de Ribeirão Preto, vinculado ao Departamento de Psicologia e Educação, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

Dentro das empresas se apresenta na forma de assédio moral, assédio sexual, autoritarismo, crueldade nos processos seletivos e de avaliação e comentários que denigrem a imagem do funcionário. De acordo com Kodato, “esse tipo de violência se aproveita das relações de mando”, como a relação entre gerente e subordinado. Os cargos de chefias inferiores, inclusive, são aqueles em que mais se exercem as relações com violência e autoritarismo, “porque são os menos capacitados e encontram na violência uma forma de exercer o poder”, afirma o coordenador.

O juiz federal do Trabalho e livre-docente da Faculdade de Direito da USP, Jorge Luís Souto Maior, identifica a violência nas empresas como sendo um efeito inerente ao capitalismo. “As empresas são, igualmente, resultado de um modo de ser da sociedade. A necessidade de se vender força de trabalho, em lógica de concorrência, é, em si, uma violência do próprio modelo de sociedade capitalista. Essa submissão do ser humano ao capital só se obtém por uma violência, historicamente construída, da exclusão da propriedade dos meios próprios de sobrevivência. Nas empresas essa lógica se reproduz e se reforça, pois é um dos espaços em que o capital se assume enquanto poder”.

Entrevistado sobre o tema, o jurista aponta a dispensa imotivada como a maior forma de violência no âmbito empresarial, vez que de forma renitente e contrária à previsão “contida no inciso I, do artigo 70. da Constituição Federal, se tem admitido na doutrina e na jurisprudência consistente na possibilidade de o empregador conduzir um empregado ao desemprego sem sequer ter a obrigação de lhe explicar o motivo. Junto com essa possibilidade vêm várias outras formas de violência que vão desde as mais evidentes, como o assédio moral e sexual,  os acidentes do trabalho fruto de condições adversas e as práticas de revista íntima, até as menos admitidas enquanto tais como a supressão reincidente dos direitos dos trabalhadores por parte das empresas, sobretudo na terceirização”. Para ele, esse estado de violência é incentivado pela impunidade.

Histórico de violência

Para Kodato, a relação colonizador e colonizado moldou a forma como o brasileiro enxerga as relações de trabalho. “Se fizermos uma análise das relações de trabalho no Brasil, vemos que elas ainda são pré-modernas e arcaicas, não chegaram ainda à modernidade, e muito menos, à pós-modernidade”. Os ambientes de trabalho, comumente, não possuem uma visão de trabalho em grupo e espírito de equipe, prevalecendo o individualismo e o pensamento de que os colegas de trabalho são, na verdade, inimigos.

Contribui, também, para a persistência da violência institucional, o fato do Brasil ser um país violento para as minorias. É possível observar que os casos de violência dentro do ambiente de trabalho acontecem com maior frequência quanto mais inferiores são as posições ocupadas na hierarquia. Sendo assim, os trabalhadores do setor terceirizado — que, em geral, fazem parte das minorias são os que mais sofrem com esse tipo de violência, que, além do assédio moral, se manifesta através da discriminação e dificuldade em ascender nos postos de trabalho e na carreira. “São as minorias, também, que mais sofrem bullying nas escolas. Essa violência afeta as relações de trabalho de tal forma que as minorias acabam servindo como bodes expiatórios, seja nas escolas ou nas empresas”, diz Kodato.

Na maioria das vezes, são ridicularizados e humilhados em relação às suas competências e desempenho laboral. A desculpa mais comum, segundo Kodato, é que o ato se dá por conta do funcionamento da produção, crise na instituição ou exercício da gerência. “Existe toda uma agressividade, uma violência acumulada nas relações de trabalho, nas relações com o mundo, que tem que ser descarregadas em algum lugar”. Geralmente, no elo mais fraco.

O Estado como um agente violador

Por se manifestar por meio de relações hierárquicas, a violência institucionalizada se mostra, também, através de ações e omissões do Estado. Segundo Rodrigo Salgado, mestre e doutor em direito econômico pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a violência policial é a forma mais explícita de violência institucional exercida pelo poderio estatal. Ela se mostra em práticas de torturas que ainda são usadas por policiais, principalmente em regiões periféricas, e em práticas ditatoriais em processos investigatórios, por exemplo.

O Estado também se porta violentamente e, portanto, institucionaliza essa prática, “a medida em que institui leis ou políticas que ao invés de promover a igualdade aprofunda o cenário de desigualdade”, afirma Salgado. Essa faceta é menos evidente que a da violência direta, como a policial, uma vez que é através da implantação de políticas públicas desfavoráveis ou a não implementação de políticas de auxílio, que o Estado se põe como um agente violador. O professor usa o exemplo do sistema tributário brasileiro como exemplo para mostrar o quão violento pode ser o Estado, por meio de suas leis. “O lado mais comentado hoje na administração pública e na economia é o sistema tributário, ele é um agente perverso, ele taxa os mais pobres, inviabiliza a atividade econômica para quem é menos favorecido.”

Terceirização como forma de violência

Em resposta ao jornalista Leonardo Sakamoto, publicado no texto  Terceirização: retroceder em direitos é um ato de violência institucional,o juiz do trabalho e professor de direito Marcus Barberino disse que o projeto de terceirização que está em andamento no Congresso Nacional “flerta” com a violência institucional uma vez que aprofunda desigualdades. Segundo o professor Rodrigo Salgado, “na terceirização você tem um sistema mais frágil de proteção ao trabalhador, ele está exposto a um eventual maior ataque à sua integridade profissional”, dessa forma, não só o Estado estaria praticando esse tipo de violência como também, o empregado estaria mais vulnerável a sofrê-la de seus patrões.  

Ao terceirizar as atividades fins, como está proposto no projeto de lei brasileiro, o trabalhador, que antes trabalhava em regime CLT e passaria a trabalhar em PJ (pessoa jurídica), teria um ganho de salário inicial, uma vez que os descontos que antes eram aplicados para cobrir direitos da CLT não seriam mais cobrados. Contudo, após demissões ーque se tornam mais fáceis nesse tipo de regimeー, o trabalhador seria recontratado com salário menor. Dessa forma, a terceirização gera mais postos de trabalho ao mesmo tempo em que diminui significativamente o salário do empregado, conforme afirma Salgado.

A Espanha, que passou por uma reforma trabalhista em fevereiro de 2012 e é o modelo que inspira o governo de Michel Temer no Brasil, reflete algumas das consequências de desigualdade que a terceirização pode acarretar. Hoje há mais postos de emprego no país que, em 2008 viveu uma de suas maiores crises econômicas e maiores índices de desemprego (passou de 22,5% para 18,6% atualmente). No entanto, esses empregos são considerados precários. Houve, por exemplo, a contratação de empregados temporários em massa por indústrias, diminuindo seus custos com indenizações e só 26,5% da população possui contrato empregatício com validade definitiva.

Com o aumento do trabalho informal, o trabalhador não consegue mais prover seu sustento apenas com um emprego, devido ao salário insuficiente. “Esses novos trabalhos forçam o trabalhador a ter mais de um emprego”, afirma o professor. Dessa forma, tendo que buscar seu sustento em outros meios o trabalhador se sujeita não só a casos de violência dentro do próprio ambiente de trabalho mas a esse tipo de sistema que o violenta também.

A terceirização serve para pulverizar e fragilizar a classe trabalhadora, dificultado sobremaneira as possibilidades de sua atuação coletiva, ainda mais porque, bem ao contrário, incentiva uma lógica de concorrência entre os trabalhadores”, explica Souto Maior

Em seu artigo Terceirização Sob uma Perspectiva Humanista, ele adverte para os males institucionais da terceirização, principalmente a precarização das condições de trabalho e da transformação do empregado em uma mercadoria, um produto, negociável entre a empresa contratante e a contratada, sem a garantia da responsabilização patrimonial daquele que de fato se aproveita da sua força de trabalho.

A terceirização surge como uma técnica administrativa de diminuição dos custos e especialização da produção. Com a terceirização da atividade-meio, as indústrias poderiam investir mais recursos na atividade-fim, estimulando o seu desenvolvimento. No Brasil ainda é ilegal a terceirização da atividade-fim, mas por força de construção jurisprudencial, uma vez que não há lei regulamentando o tema. O que argumenta Souto Maior, no entanto, é que a diferenciação entre as atividades é algo muito subjetivo, e de pouca importância, porque, na prática, a terceirização se torna uma mera intermediação da mão-de-obra, afastando-se da realidade produtiva, e abrindo uma brecha para a criação de trabalhadores de “segunda classe”.

Tendo em consideração as agressões institucionalizadas, a fragilidade da proteção jurídica dos trabalhadores terceirizados, explicitada pela ausência de lei que lhes garanta isonomia de direitos com a categoria do tomador dos serviços, oportunidades de avançar na carreira e até mesmo pela dificuldade de se identificar a empresa que deve responder patrimonialmente por eventuais processos trabalhistas, se torna uma questão importante por facilitar a discriminação entre os empregados no ambiente de trabalho, além da própria condição do trabalhador como um produto da empresa fornecedora de mão-de-obra se assemelhar à escravidão, sendo que nos dois casos o ser humano é a mercadoria.

A violência institucional contra mulheres

Ilustração: Fernanda Ozilak

O mercado de trabalho, de uma forma geral, apresenta condições diferentes para homens e mulheres. Segundo Angela Christina Lucas, que pesquisou a visão dos profissionais do RH sobre a mulher no trabalho em estudo realizado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, apesar de avanços, o ambiente organizacional dentro das empresas mais tradicionais expulsa as mulheres ao oferecer remunerações diferentes e não promover processos seletivos justos e com equidade.

Quando se trata da violência institucional, a situação não é diferente e costuma ser mais pesada para as mulheres, especialmente aquelas que pertencem a outras minorias. “Muitas vezes, os chefes não admitem que uma mulher negra ou homossexual possa trabalhar competentemente tanto quanto um homem ou tanto quanto ele”, salienta Kodato. Além disso, a cantada é naturalizada no ambiente de trabalho e não são raros os casos em que mulheres aceitam o abuso sexual como uma forma de manter o emprego ou ascender profissionalmente.

De acordo com o Relatório Global de Desigualdade de Gênero do Fórum Econômico Mundial de 2017, faltam 170 anos para colocar a mulher em altos cargos de poder. E para mulher negra, como mencionou Kodato, o disparate é ainda maior. No mercado de trabalho formal, as mulheres negras não alcançam 40% do salário dos homens brancos e, ainda tem o salário 30% menor em relação a mulheres brancas.

Além, do machismo estrutural que atinge todas as mulheres, a mulher negra ainda tem que lidar com o racismo. A somatória dessas duas conjunturas levam as mulheres negras a serem duplamente questionadas, afastando-as da possibilidade de ascensão econômica e social.

Ana Mastrochirico e Gabriela Cestari

A violência institucional dentro do mercado de trabalho se expressa principalmente por meio do assédio moral e sexual. Em cargos subalternos, as mulheres tem medo de denunciar. Oitenta por cento dos casos de assédio de superiores são mulheres e apenas 12% delas denunciam, de acordo com os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em um país onde homens ocupam a maioria dos cargos de poder, como observamos, eles usam desse privilégio para atacar a dignidade sexual das mulheres que ali trabalham.

No último mês de junho, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT) lançou uma nova cartilha sobre o assédio sexual. A série de perguntas e respostas explica de forma didática o que é, as formas em que se apresenta e como se defender dessa violência.

Segundo a cartilha, o assédio sexual no ambiente de trabalho é “a conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual”. Tem caráter discriminatório e opressivo, infringido direitos fundamentais da vítima. O assédio sexual desnivela direitos por se enquadrar no conceito de ato discriminatório da Convenção 111 da OIT. Considera-se, portanto, toda distinção, exclusão ou preferência fundamentada no sexo ou em outros fatores alteram a igualdade no mercado de trabalho.

Legenda: campanha da revista AzMina de 2016 contra assédio no trabalho

A mulher é agredida sexualmente, moralmente e cognitivamente. Enquanto o homem é atacado mais em sua competência, integridade física e moral. O tipo de agressão muda, mas Sérgio Kodato ressalta: “Mudam-se as formas das violências sofridas, mas no fundo tudo é uma forma de exercício de poder. Como diz Hannah Arendt, só recorre à violência o homem que não tem poder, ou seja, o impotente”.

Combate, denúncia e fiscalização

Para combater a violência dentro das empresas está se buscando a criminalização do assédio moral, a punição severa do assediador, a punição da empresa e a reparação de danos às vítimas. Kodato acredita que uma boa medida se encontra em projetos de humanização das relações de trabalho nas empresas através de iniciativas como aperfeiçoamento e integração entre os funcionários. “O funcionário não pode ser visto como uma máquina, que produz mercadoria e lucro, mas, sim, como um ser humano potencialmente produtivo, criativo e que está inserido em um trabalho coletivo e socialmente útil”.

Atualmente, não existe um órgão ou pessoa que realize a fiscalização para inibir esse tipo de prática porque é uma violência que é exercida dentro dos mecanismo institucionais e dentro dos postos de trabalho. Mas, a denúncia de abusos graves e severos deve ser feita junto ao sindicato da categoria. Kodato recomenda que os próprios sindicatos e empresas criem setores de apoio para o assédio moral e violências, como forma de garantir a saúde física e mental do trabalhador.

Para Souto Maior, no entanto, “institucionalmente, são responsáveis por fazer valer os preceitos jurídicos trabalhistas os auditores fiscais do trabalho, a magistratura trabalhista, os procuradores do trabalho e advocacia trabalhista”. O magistrado pondera que o Direito do Trabalho, apesar de insuficiente para eliminar o poder do capital sobre os trabalhadores, tenta limitá-lo, conferindo maior possibilidade de reação ao empregados por meio de organizações coletivas e o exercício do direito de greve.

Segundo Angela, o setor de recursos humanos, que seria o responsável por defender e garantir o bem-estar dos funcionários, vem falhando nesse aspecto. O RH passou de um modelo de departamento pessoal que cuidava da carteira de trabalho, férias e décimo terceiro, para um papel de pensar o futuro da empresa. “Só que nessa história de querer elevar seu status na instituição, o setor começou a passar por um processo de se distanciar do seu papel principal, que é olhar para os funcionários”.

Ameaça para a democracia

A violência institucional está diretamente ligada com a política autoritária. De acordo com Kodato, ela auxilia a política autoritária porque os grandes tiranos e as grandes políticas autoritárias são mantidas e legitimadas cotidianamente pelas pequenas relações autoritárias. “A violência institucional no nosso país solapa a democracia tanto nas empresas quanto nas instituições, gerando grande desigualdade e discriminação”. Segundo ele, a violência institucionalizada ajuda a legitimar a política autoritária e apesar da ditadura ter acabado no país, as instituições, escolas e empresas continuam sendo geridas de forma autoritária. “Nossos gerentes e chefes são autoritários porque foram criados nesse regime e só aprenderam isso, então a violência institucionalizada é um dos grande males da democracia”.

 

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