Alfabetização precoce na educação infantil fere direito à infância

Para pesquisadora, escolarização adiantada e falta de preparo dos pedagogos acarretam em prejuízos ao ensino

São José dos Campos-SP. 27/08/2014. Creche Centro de Educação Infantil Professor Paulo Cesar dos Santos Mortari. Foto: Sergio Amaral/MDS

A primeira infância é um período crucial para o desenvolvimento humano. É nela que os pequenos interagem de forma lúdica com a dança, a música e as tantas recreações que lhes agradam. Entretanto, apesar desse entretenimento ser previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como direito à brincadeira, não é sempre que ele é posto em prática com qualidade e preparo pelas escolas brasileiras.

O diagnóstico é da especialista em primeira infância Cibele Witcel, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). De acordo com ela, o ensino de crianças ainda insiste na escolarização precoce, por meio de uma educação que alfabetiza antes mesmo dos seis anos de idade. A brincadeira, assim, é colocada em segundo plano, mesmo ela sendo um direito previsto em lei. “A mente é separada do corpo dentro da escola. A turma passa a maior parte do tempo na sala de aula e ganha um pequeno intervalo para brincar, como se fosse uma libertação”, afirma. “Os meninos e meninas têm um espaço muito limitado para descobrir suas expressões corporais, estimularem a criatividade e suas relações com outras crianças”, avalia Witcel.

A pedagoga, que também é coordenadora de uma escola municipal de educação infantil (EMEI) de SP, acredita que o fim da alfabetização antecipada para os pequenos de até seis anos de idade não prejudicaria o rendimento deles no fundamental. Em sua concepção, para aprender a ler e escrever é necessário que as etapas anteriores estejam bem assimiladas. Um respaldo disso, segundo ela, são as defasagens dos pré-adolescentes nos anos finais do ensino fundamental. No último índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb), divulgado em 2015 pelo Ministério da Educação, a nota das turmas do 9º ano da rede municipal de São Paulo foi 4,3 – bem abaixo dos 5,3 projetados. “Os problemas de ensino no fundamental constatam que a escolarização precoce não ajuda em muita coisa”, aponta.

Histórico
A partir de 1935, Mário de Andrade, durante sua gestão no Departamento de Cultura da Prefeitura de SP, fundou a rede pública de ensino infantil. O serviço, oferecido em Parques Infantis (PIs) sem o objetivo de alfabetização, era voltado para crianças de três a seis anos, com foco na valorização da cultura nacional por meio de brincadeiras e jogos tradicionais com a livre manifestação dos pequenos. Além disso, havia o atendimento médico e odontológico e a distribuição de leite e frutas. No entanto, do final da década de 60 para o começo da década de 70, a concepção de criança defendida por Mário de Andrade foi perdendo lugar para a ideia de preparação dos pequenos para o mundo escolar, por meio da alfabetização.

Mário de Andrade com crianças de famílias operárias em Parque Infantil (PI). Foto: Reprodução

Assim, sob o bordão “a criança não nasce aos sete anos”, a fim de dar coro à preparação escolar na primeira infância, os Parques Infantis se transformaram nas Escolas Municipais de Ensino Infantil (EMEI) em 1975.

Criatividade silenciada
Em sua dissertação de mestrado, defendida em setembro de 2016, Cibele Witcel acompanhou os trabalhos de uma EMEI paulistana, onde as professoras desenvolveram oficinas lúdicas. Em uma das atividades, elas deram jornais aos pequenos e os estimularam a construir objetos, como espadas e cabanas. A proposta se deu aceitando as ideias da turma, e nenhuma brincadeira foi imposta pelas educadoras. “Os alunos deram a sugestão de rasgar as folhas e as professoras legitimaram. Elas davam voz à criatividade deles”, sublinha.

A pesquisadora reconhece, entretanto, que mesmo sendo uma iniciativa pensada com a participação dos pequenos, a falta de um trabalho final para a proposta fez com que o projeto fosse por água abaixo: ao final do ano, as professoras impuseram à turma uma coreografia do filme Frozen, em que a dança das meninas mostrava delicadeza e a dos meninos representava a força e a coragem, para apresentar aos familiares e responsáveis.

Cibele avalia que esse episódio silenciou a voz das crianças na criação de ideias criativas. “As professoras reforçam estereótipos de gênero com esse trabalho de fim de ano”, diz.

“Toda essa vivência prova que a educação infantil avança, mas ao mesmo tempo retrocede. Romper com as amarras do ensino conservador e castrador presente desde sempre no Brasil é difícil”, atesta ela.

Sensibilidade X Falta de preparo
Para rebater esse modelo educacional em que meninos e meninas não têm voz nas experiências criativas da escola, Cibele afirma, em sua dissertação de mestrado, que produzir cultura junto às crianças significa construir uma pedagogia baseada nas artes. Essa iniciativa, na visão da pedagoga, tornaria possível apresentar múltiplas linguagens aos educandos – como a literatura, a dança, o canto e a narrativa –, e não só a da palavra com o foco em alfabetizar, como acontece hoje. “Todas essas expressões trazem à criança uma sensibilidade sobre o que está ao seu redor. Ela passa a compreender diferentes visões de vida e do mundo”, diz.

A educadora considera, no entanto, que os profissionais da área não estão preparados para trabalhar esse viés artístico. Segundo ela, as escolas continuam focando na alfabetização durante a primeira infância, porque os pedagogos possuem uma formação muito fraca no que diz respeito às expressões corporais dos pequenos e os modos de trabalhá-las. A FEUSP oferece, hoje, apenas uma disciplina de dança e teatro, que sequer está na grade curricular obrigatória dos alunos do curso.

“As professoras reforçam estereótipos de gênero com esse trabalho de fim de ano”, diz. “Toda essa vivência prova que a educação infantil avança, mas ao mesmo tempo retrocede. Romper com as amarras do ensino conservador e castrador presente desde sempre no Brasil é difícil”

Diante dessa escassez de conteúdo, Cibele afirma que é necessário intensificar não só a formação intelectual dos pedagogos, como também a prática da expressão corporal, que permita que os educadores tenham novas experiências teatrais, de dança e arte. “É importante que os professores olhem para o corpo, para o universo sensível da criança. Para isso, eles precisam participar de oficinas de brincadeira, que os faça enxergar em si mesmos as possibilidades de se trabalhar o lúdico com as crianças”, explica.

Mesmo que poucas vezes, dinâmicas assim têm acontecido na Faculdade de Educação da USP. Nelas, os educadores praticam exercícios de aquecimento, jogam objetos um para o outro, criam objetos com papel e sucata, por exemplo, e fazem encenações teatrais. No entanto, a pesquisadora declara que não há espaços próprios para essas atividades.

Nesse sentido, Witcel expõe que a rede municipal também carece de espaços de dança, artes plásticas, teatro e outras práticas: “as áreas das EMEIs precisam ser reinventadas. O planejamento dessas escolas não é o ideal para uma criança do zero aos seis anos. O ideal seria que todas tivessem locais para as mais diferentes atividades lúdicas, mas o sistema de ensino não tem essa visão de educação.”

 

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