A medida de segurança e os caminhos penais dos indivíduos com doença mental

Embora o Brasil seja avançado em comparação a outros países, sua legislação e sua prática em saúde mental ainda são lacunares quanto aos direitos de quem possui transtornos mentais

Paciente amarrado na cama para não agredir a si mesmo em Hospital de Custódia da Bahia Fonte: Iano Andrade/Correio Braziliense

Por: Claire Castelano, Gustavo Drullis, Ian Alves, Luis Eduardo Nogueira, Maria Elisa Pinheiro e Rafael Castino

Quando um indivíduo portador de doenças mentais comete um crime, a Justiça pode considerá-lo incapaz de ser responsabilizado por seus atos criminais por conta de sua doença ― ou, em outras palavras, pode considerá-lo inimputável. A esses sujeitos, isentos de pena, e também a alguns dos semi-imputáveis, a legislação brasileira aplica um tipo específico de sanção penal, chamado de medida de segurança. Ainda que seja fundamental para resguardar os direitos de pessoas com transtornos mentais, essa medida possui lacunas quanto ao respeito a esses indivíduos, e tem gerado cada vez mais discussões nos campos legislativo e sanitário brasileiros.

A caracterização de um réu como inimputável é feita por uma perícia médica, que conclui, nesses casos, que ele não tinha a capacidade de entender o caráter ilícito de sua ação. Por conta disso, esse réu não é julgado por sua culpabilidade, sendo sentenciado à pena em presídios tradicionais; mas sim por sua periculosidade, sendo destinado ao tratamento, ainda que de maneira compulsória. O quadro abaixo exibe os dois tipos de tratamento diferentes que uma medida de segurança pode encaminhar. Um deles é o detentivo, em hospitais de custódia (também denominados de manicômios judiciários). O segundo tipo é o restritivo, que ocorre em Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou em Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS).

Os dois diferentes tipos de medida de segurança
Arte: Dado Nogueira

Tratamento ambulatorial x manicomial

O tratamento detentivo consiste em internações compulsórias em hospitais de custódia ou, mais popularmente, manicômios. Excluído do convívio social, o paciente não tem prazo pré-estabelecido para finalizar seu tratamento e precisa esperar um novo laudo médico que o considere apto para ser liberado.

Termos como “manicômio” e “hospício” são cunhados no vocabulário do brasileiro há décadas. A ideia de um local para tratamento de indivíduos portadores de deficiência mental sempre é reforçada por filmes, novelas e séries. Geralmente, a tônica mostrada na mídia é a mesma: o manicômio é um lugar degradante e que cuida de seus pacientes de uma maneira extremamente impessoal, muitas vezes com maus tratos e doses excessivas de remédios.

Segundo a psicóloga e sanitarista Lumena Furtado, essa caracterização não ficaria tão distante da realidade: “Quando se leva a pessoa a um hospício, e se arranca essa pessoa da sua vida, você a tira da condição de sujeito da sua própria vida”. Na experiência de Lumena, o contato com os entes queridos e a manutenção dos laços efetivos é muito importante para a eficiência do tratamento, juntamente com a permanência do paciente em sua rotina, algo impossível no atendimento em hospitais de custódia.

Uma onda antimanicomial iniciada na Itália, nos anos 90, procurou combater as más condições em que os portadores de doença mental eram colocados. Assim, o tratamento ambulatorial começou a tomar forma: “Há pouco mais de 30 anos, o Brasil entrou no hall dos países que assumiram como uma tarefa importante fazer o que se chamou de reforma psiquiátrica. Começou como um movimento social e depois virou uma política pública.”

Como resultado dessa nova mentalidade , surgiu a Lei de Reforma Psiquiátrica (10.216/2001), idealizada pelo deputado Paulo Delgado, que procura colocar a internação do paciente como último recurso, além de abolir as internações em ambientes asilares, como hospícios e manicômios. A Lei também obriga que haja autorização do paciente ou de seu responsável legal para que o diagnóstico e tratamento possam ser realizados.

Assim, os indivíduos portadores de deficiência mental teriam acesso a um tratamento mais humanizado e que traz melhores resultados, na visão de Lumena, ocorrendo com visitas periódicas a psiquiatras e outros profissionais da saúde:  “Você tem que fazer [o tratamento] com a pessoa lidando com a vida dela, com seus vínculos afetivos, amorosos, com suas decepções. O cuidado que priva a pessoa da liberdade, de ser ela mesma, não é tratamento, isso é encarceramento.”

Internação manicomial sem prazo máximo

Uma outra discussão que reacende ao se abordar as medidas de segurança é a questão do tempo. No artigo 97, da lei 7209 de 1984, é apresentado que a internação ou tratamento ambulatorial será por prazo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguado a partir de perícia médica a cessação da periculosidade. É importante ressaltar que esse mesmo artigo estipula o prazo mínimo de 1 a 3 anos, o que, como afirma Cristiano Maronna, diretor do Instituto Brasileiro em Ciências Criminais, significaria a realização de uma nova perícia, após esse período, para avaliar se o indivíduo sentenciado continua com o mesmo quadro clínico.

Ainda tratando da não delimitação de um prazo máximo, Maronna comenta que, dentro de conceitos jurídicos, “já é entendido que o tratamento não pode superar o tempo que se cumpriria no caso de ser imputável, então, pode-se usar como parâmetro tanto a pena máxima quanto pode se pensar em uma pena concreta para cada caso”. Ainda que o pesquisador levante essa compreensão jurídica, é passível de conhecimento que muitos dos manicômios, por se tratarem de um sistema falido, nem sempre aplicam o prazo máximo desta maneira.

Em um levantamento realizado, em 2012,  pelo jornal Correio Braziliense, são apontados os 10 casos nos quais os indivíduos estão há mais tempo internados quando comparados à pena máxima do crime cometido. São citadas internações de 24 até 32 anos, partindo de penas máximas para os imputáveis que vão de 1 a 6 anos e 11 meses. Ou seja, casos em que o tempo de detenção de um indivíduo que nem tinha consciência de seu ato foi maior do que o tempo que ele cumpriria se tivesse praticado o delito em plena lucidez. Quando se trata de pessoas com doenças mentais, no Brasil, a prisão perpétua parece aceitável.

A tabela mostra os dez indivíduos há mais tempo internados, quando comparados o tempo em que estiveram internados e a pena máxima pelo crime que cometeram
Fonte: Correio Braziliense/Reprodução pessoal
Arte: Dado Nogueira

A importância da internação psiquiátrica

“Hoje em dia, no Hospital de Custódia e Tratamento, a internação é só realmente em casos muito graves, como de surtos ou de pessoas que representam um risco pelo seu comportamento”, afirma Cristiano Maronna. A psiquiatra Tânia Alves também explica que, quando a periculosidade do paciente é comprovada, ou seja, quando existe risco de autoagressão ou de agressão a outras pessoas, é preciso realizar uma internação psiquiátrica mesmo que involuntariamente, porque é dever do Estado garantir a segurança de todos os cidadãos. Maronna, porém, lembra, “tem que estar presente esse quadro extremo de risco à integridade física da pessoa [ou de outras], de uma situação completamente excepcional”.

Mesmo nos casos em que há a internação, ela só deve ser feita durante o tempo necessário. Segundo Maronna, ela deve durar “até que esse momento de emergência seja ultrapassado, durante o período estritamente necessário para que a pessoa se recupere”.

Esses casos, no entanto, são exceções. Na maioria das situações em que a Medida de Segurança é acionada, o tratamento ambulatorial já é suficiente. “Mesmo se tratando de crimes mais graves punidos com reclusão, é possível desde cedo aplicar o tratamento ambulatorial.”

O que acontece na realidade brasileira é que muitas pessoas são internadas em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico sem que haja necessidade para isso. Nesses casos, ainda, esses Hospitais não cumprem o papel que deveriam, proporcionar uma real possibilidade de tratamento aos pacientes de maneira digna. Ao contrário, atualmente eles funcionam como aparatos higienistas da lógica manicomial, apenas segregando.

Uma medida higienista

Historicamente, os hospícios serviram como maneira de excluir pessoas que, na concepção dos que estavam no poder, não mereciam viver em sociedade — assim como leprosários e hospitais de tuberculosos. No Brasil, há registros de internações compulsórias de mulheres que traíram seus maridos e presos políticos da época de ditadura militar. E, ainda hoje, a forma de atuação dos manicômios é degradante e anacrônica, remetendo a uma época em que não existiam medicamentos para transtornos mentais e que o tratamento psicológico estava em fase gestacional.

Rompendo com essa visão que beira a desumanidade, surge a proposta de cuidar dos indivíduos portadores de deficiência mental em liberdade. Para isso, foca-se em relações afetivas, algo que, na visão de Lumena Furtado, tem sido muito mais interessante. “Desta maneira, conseguimos enxergar evoluções superiores em relação aos métodos utilizados nos manicômios — que infelizmente, permanecem até hoje”.

Diferentes perspectivas

“Atualmente, vivemos uma grande disputa entre projetos de mundo. A primeira visão defendida é de que todas as vidas possuem igual valor. Independente de ser portador de deficiência mental, usuário abusivo de drogas ou possuir uma situação de saúde distinta, o indivíduo merece ter acesso a uma vivência digna, em liberdade e com direito de reinserção nos processos de convivência”, comenta Lumena. “Por outro lado, há aqueles que acreditam que nem toda vida vale igual, o que abre espaço para excluir indivíduos da comunhão social com a justificativa de estar “limpando” a sociedade.”

Tal disputa não se limita às crenças pessoais daqueles envolvidos no debate — por detrás do modelo manicomial, estão resguardados interesses políticos e econômicos. Nos últimos anos, o Brasil sofreu um retrocesso em relação aos processos cuidativos. Antes, o Governo Federal estava envolvido e aplicado em fechar leitos manicomiais e ampliar a rede psicossocial. Hoje, a mesma instituição conta com pessoas descompromissadas e desinteressadas em relação a este assunto.

Donos de hospitais tem forte influência no Congresso Nacional — indo além, o atual ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, já se posicionou a favor do modelo manicomial de tratamento. O cuidado em isolamento rende altos lucros aos centros médicos, beneficiados pela exclusão social do paciente. Enquanto isso, o movimento sanitário busca ganhar espaço no cenário,  exibindo outras perspectivas para recuperação — muito melhores àqueles, até agora, prejudicados e significativamente menos lucrativas aos empresários da saúde.

O documentário realizado como trabalho de conclusão de curso, em 2004, pela ex-aluna de Jornalismo da USP Crícia Giamatei, expressa, através das entrevistas humanizadas e dos retratos visuais das condições dos espaços, a falência do sistema manicomial no Brasil:

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