Canções de Milton Nascimento são símbolos de um discurso presente até hoje

Pesquisa do Instituto de Estudos Brasileiros analisa os discos Minas e Geraes e aponta a busca por uma “conciliação de classes”

Foto: Reprodução

A música popular brasileira contribui para a compreensão de processos sócio-históricos do país. Artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque e Milton Nascimento transmitiram, através de suas obras, as transformações enfrentadas pelo Brasil durante a ditadura militar. Nem sempre com referências explícitas, o fato é que esses compositores refletem os acontecimentos de uma época e suas músicas se tornaram símbolo de luta em períodos distintos.

A grande motivação do filósofo Vinícius José Fecchio Gueraldo era entender as razões pelas quais as canções desses artistas se mantém, nos dias atuais, sendo reivindicadas em manifestações pelo atendimento às demandas sociais.

Em sua dissertação de mestrado, realizada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, Gueraldo restringiu-se ao estudo de discos de Milton Nascimento para obter respostas a essa questão. A razão é simples: além do gosto pelo trabalho de Milton, o cantor e compositor não havia tido sua obra como objeto de muitas pesquisas, diferentemente de outros artistas da MPB.

A partir da análise dos álbuns Minas (EMI-Odeon, 1975) e Geraes (EMI-Odeon, 1976), o filósofo concluiu que Milton canta sobre uma “conciliação de classes”. No conturbado momento político, as pessoas clamam por essa conciliação pressuposto dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) , explica Gueraldo. Para ele, esse é o motivo pelo qual as canções do artista são utilizadas, por uma parcela da sociedade, como expressão de um discurso.

Capas dos discos Minas e Geraes – Modificação: Larissa Fernandes

Quando questionado sobre as situações em que as músicas do cantor ressoaram, o mestre em Filosofia cita a ocupação da Fundação Nacional de Artes (Funarte) no ano passado, no Rio de Janeiro, em que artistas protestaram contra a extinção do Ministério da Cultura, além da participação de Milton Nascimento em um show contra o governo de Michel Temer e, até mesmo, de posts nas redes sociais com as letras do artista.

Cantar Milton Nascimento significa buscar um lugar, mesmo que imaginário, no qual tudo seja mais equilibrado

A conclusão do filósofo se deu somente através da análise do material estético.  “Não pode cair na biografia do autor, senão a discussão fica meio perdida, psicologizante, biográfica. A obra diz alguma coisa porque é organizada daquele jeito”, pondera. “A ideia foi estudar as relações formais, internas dos discos. Desde harmonia e letra até o discurso que cada faixa faz uma com a outra e o que isso quer dizer”.

Ainda que tenham sido lançados separadamente, Minas e Geraes possuem ligações entre si. O primeiro marca uma virada na carreira de Milton. À época, apesar de já ser reconhecido, o artista possuía um público restrito e, com o disco, alcança o sucesso de vendas. Nele, a guitarra está presente. “A guitarra pressupõe uma industrialização, energia elétrica. É vinculada a uma história norte-americana, que é o surgimento do rock. Marca a década de 50”, conta Vinicius. Já Geraes apresenta a viola. O pesquisador completa: “Nossa referência mais imediata é a moda de viola do centro-oeste brasileiro, portanto, uma canção rural. Outro processo de trabalho”. Ele também aponta que algumas faixas mesclam essas duas matrizes estéticas tão distintas.

Enquanto as sonoridades dos LPs (Long Plays) se distinguem, as letras trazem semelhanças entre si. A partir da análise das vinte e três letras, Gueraldo notou que, em ambos os discos, existe uma certa nostalgia de um período que se foi.

O que os discos contam

O pesquisador explica que as histórias dos discos estão inseridas no período entre 1930 e 1975, marcado pelo processo de consolidação do capital no Brasil. Junto a isso, há o desenvolvimento industrial, a passagem do campo para a cidade e a instauração do trabalho assalariado. O “álbum-duplo” apresenta nostalgia de um momento em que práticas não propriamente capitalistas coexistiam com esse modelo. “A defesa dos discos é de um local no qual era possível manter-se capitalista sem ser completamente explorado, vulgo uma conciliação de classe”, conclui Gueraldo. Para ele, não se propõe um discurso revolucionário, mas percebe-se retrocessos nos direitos da população situação que também ocorre atualmente.

Parte da letra de Ponta de Areia – Modificação: Larissa Fernandes

O filósofo cita algumas músicas que exemplificam a questão. Em Ponta de Areia, presente em Minas, Milton canta sobre uma estrada de ferro que, de fato, existiu. Ele conta que, enquanto a ferrovia estava ativa, o povo era mais feliz. Com a sua desativação, durante a ditadura militar, surgiram várias consequências para a população que vivia no entorno da estação de trem. O mesmo ocorre em Saudades dos Aviões da Panair, em que Milton fala sobre como a vida se tornou mais caótica com o fim da companhia aérea. Apesar da temática mais campezina, essa ideia também é apresentada em Geraes.

Para o desenvolvimento de seu trabalho, o pesquisador buscou reconstruir historicamente esse processo a partir de referências na história e na sociologia. Sua dissertação, “Em busca do consenso: Milton Nascimento e a perda dos laços comunitários, teve orientação do professor Walter Garcia.

 

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