Cooperação internacional entre cidades traz benefícios mas ainda apresenta fragilidades

São Paulo participa atualmente de muitas redes de cidades, algumas das quais voltadas aos Direitos Humanos

Reunião Extraordinária da Câmara Municipal de Córdoba (Argentina) na qual a delegação da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo foi recebida para realizar troca de experiências na pauta de memória e verdade (2016). Imagem: Kelly Komatsu.

Não é mais novidade que a cooperação internacional deixou de ser realizada somente entre países ou entre esses e organizações internacionais. Cada vez mais, vemos cidades e estados ocupando suas posições na arena internacional, intercambiando experiências e políticas. Uma dessas formas de cooperação que mais vem ganhando espaço é a cooperação através de redes de cidades, tema de mestrado de Kelly Komatsu Agopyan, do Instituto de Relações Internacionais da USP, cuja análise foca a experiência da cidade de São Paulo.

Seguindo o caminho da cooperação em Direitos Humanos, a pesquisadora optou por delimitar seu estudo a uma rede específica, a organização de Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), em um cenário marcado por um boom desse tipo de instituição. “Escolhi estudar esse modelo de cooperação justamente para entender porque há tantas redes. Me questionava e ainda me questiono se é porque está dando certo ou porque é fácil de se criar, já que acaba seguindo a normativa pré-estabelecida em cada país”, explica Kelly.

Ela detalha que a cooperação descentralizada, isto é, aquela realizada por entes subnacionais, pode ser concretizada através de múltiplas modelos, sendo que um dos primeiros foi os irmanamentos entre cidade. As cidades-irmãs tiveram seu boom no pós-Segunda Guerra Mundial, visando a fomentar relações franco-alemãs e seguindo diversas linhas de cooperação. “Os irmanamentos, embora importantes, nem sempre surtem tanto efeito na prática. Já as redes, por outro lado, têm uma estrutura de trabalho um pouco mais permanente e conseguem promover uma cooperação mais consolidada a longo prazo. Seria uma espécie de amadurecimento da cooperação, sendo a forma mais consolidada e disseminada atualmente”.

Essas redes, no entanto, só puderam sugir e vigorar devido a toda uma aparelhagem de tecnologia em massa que facilitam essa cooperação, já que grande parte dos contatos ocorre através de meios virtuais. “Com a CGLU, por exemplo, me comunicava pela internet. Afinal é impossível se conseguir ter contato físico o tempo todo”, relata a pesquisar.

A CGLU, chamada por alguns de ONU das cidades, é a maior rede do tipo que existe atualmente. A organização reúne 240 mil membros de 140 países, que abrangem cerca de cinco bilhões de pessoas, e conta com sete sedes regionais. Além dessa amplitude, a pesquisadora salienta que escolheu a rede pois sabia que era uma organização com um forte braço em Direitos Humanos. No interior dessa complexa rede, ela optou por um comitê em específico: a Comissão de Inclusão Social, Democracia Participativa e Direitos Humanos, a CISDPDH.

Kelly explica que as estruturas tanto da CGLU quanto da Comissão são diferenciadas, possibilitando com que essas tenham uma maior autonomia frente a outras redes. “A CGLU é um pouco diferente das outras redes porque a Comissão já tem um staff fixo, ainda que pequeno, de três ou quatro pessoas, tem uma coordenadora fixa, que fica em Barcelona, além de ser uma rede com um orçamento maior. Justamente por isso, a CISDPDH está em todos os eventos realizados sobre Direitos Humanos e cidades, além de ter a possibilidade de promover os seus próprios”.

A pesquisadora expõe que outro motivo que a levou a estudar a Organização foi a pouca quantidade de estudos se comparado a outras redes, como Mercocidades, que reúnes governos locais da América do Sul e é bastante estudada no Brasil. “A CGLU por si já é um assunto novo e pouco tratado. E quando o assunto é a CISDPDH, há ainda menos material por se tratar de um pedacinho pequeno da CGLU”, comenta.

Na Comissão, assim como em outras Redes, um dos principais eixos de debates é o chamado Direito à Cidade, proposto pela primeira vez em 1968 pelo francês Henri Lefebvre. O conceito propõe a ideia de que todos os cidadãos têm o direito de usufruírem dos benefícios advindos da vida urbana, sem qualquer forma de exclusão. “Direito à cidade e Direitos Humanos são temas muito conectados. Há toda uma discussão de que o Direito à Cidade é um direito humano ou de que, através do Direito à Cidade, a pessoa consegue exercer os direitos humanos”.

A questão já aparece em Constituições de alguns países, como é o caso do Equador. No Brasil, há um artigo específico em nossa Carta sobre a função social da propriedade e da terra, que envolve indiretamente a própria questão do Direito à Cidade.

Ao mesmo tempo, Kelly chama a atenção também para pautas que raramente aparecem nos debates das diversas redes, como é o caso das questões racial e indígena. “Não sei se é porque o Brasil tem a questão racial muito forte e outros países, que mais participam dessas reuniões de rede, não têm tanto, ou se realmente é um assunto que fica muito a desejar”, explica.

Participação da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo no stand da rede Mercocidades, por ocasião da Conferência Habitat III em Quito (Equador). Imagem: Kelly Komatsu.

O caso de São Paulo

Além do enfoque nas redes de cidades e mais especificamente na Comissão da CGLU, a pesquisadora optou por fazer um estudo de caso focado na cidade de São Paulo, no período da gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (2013-2016). Segundo ela, esse governo foi inovador na pauta de Direitos Humanos por ser o primeiro a criar uma secretaria específica para a área. “É preciso ter um projeto político coerente em Direitos Humanos para cooperarmos nessa temática. E foi uma gestão coerente nesse sentido”, diz.

Além desse motivo, a escolha reflete a trajetória profissional da pesquisadora que atuou como assessora internacional na Secretaria de Direitos Humanos, durante a gestão de Haddad. “Muito do meu mestrado foi influenciado pela Prefeitura, porque queria trazer a prática para a teoria”, salienta. Kelly comenta que, naquela época, muitas questões passavam por sua cabeça. Mas o questionamento central que a levou a pesquisar o tema foi se o que se fazia na Secretaria tinha algum impacto na elaboração de políticas públicas locais. “Me questionava se uma delegação vir para cá ou projetarmos nossas políticas lá fora impacta de alguma forma as políticas públicas. Com isso, cheguei a principal questão da minha pesquisa: Qual é o impacto que as relações internacionais têm de fato na política local de Direitos Humanos?”

No caso de São Paulo, a pesquisadora explica que a cidade teve uma participação considerável nas redes, em especial nas de cunho social e não tanto nas ambientais. O município, por exemplo, foi presidente da Rede de Mercocidades em 2016, além de coordenar a Comissão de Direitos Humanos da organização. Com relação a CISDPDH, Kelly conta que o contato com a Prefeitura começou via Coordenação de Direito à Cidade. A partir disso, a pesquisadora analisa como a Comissão se articulou com a Prefeitura e a própria Secretaria de Direitos Humanos.

Segundo ela, sua atuação profissional foi essencial para observar também como os planos de internacionalização mudam conforme o projeto político adotado. A questão que ainda precisa ser respondida é em que medida isso ocorre. “Conhecia um pouco a gestão anterior e agora estou vendo o que está acontecendo na atual. Na gestão Haddad, foram quatro anos em que aconteceram muitas coisas, mas que poderia ter acontecido muito mais. Havia um potencial muito grande, mas por falta de orçamento, de equipe, de tudo, a gente não conseguiu alcançá-lo”.

Um potencial subutilizado

Ao longo de sua experiência profissional e em sua pesquisa, Kelly foi percebendo que a política pública local é impactada pela cooperação internacional, ainda que às vezes indiretamente. Mas muito além disso, a pesquisadora constatou que, embora a cooperação entre cidades tenha um grande potencial, ele acaba sendo subutilizado. “Isso se deve a um monte de questões de burocracia interna, de orçamento, de staff, e até relacionado a como a cooperação funciona. Portanto, é algo que poderia ter muito mais resultados benéficos para as cidades, mas que acaba ficando refém de outras coisas”, explica.

Como fragilidades das redes, ela aponta as dificuldades de comunicação, mobilização e até mesmo de financiamento, já que muitas têm considerável inadimplência dos membros. Além disso, “é um projeto político muito instável, já que a cidade entra, mas quando muda o projeto político do governo, ela sai. É um pouco o que aconteceu com São Paulo, que voltou a participar mais das redes com pauta social com a gestão Haddad. Antes era só Iclei (Governos Locais pela Sustentabilidade) e C-40 (Grupo de Grandes Cidades para a Liderança Climática)”, as duas ambientais.

A pesquisadora também se questionava se a cooperação descentralizada seria apenas uma troca de experiências, como uma espécie de “vitrine de exposição de boas práticas”. “Em muitos casos, vejo que as redes e a cooperação acabou virando isso. Você apresenta, acaba o encontro e o que isso gera de fato? E esse não gerar algo de concreto é muito falta de um plano de trabalho a longo prazo, de ter uma estrutura de funcionários mobilizados e orçamento apenas para isso”.

Kelly explica que as redes têm potencial inclusive para fortalecer a pauta de Direitos Humanos. “É possível usar o internacional para fortalecer uma política pública que está sendo usada, fazer uma aliança de cidades que se importam com o tema e fortalecer a voz das cidades em nível internacional para essa pauta. Mas de fato vejo que isso não acontece, são ações muito pontuais e que muitas vezes não vão para frente”.

Mural com lambe-lambes localizado na região da Luz, parte do programa Cidadania Rodante nas Ruas da Luz da coordenação de Direito à Cidade, desenvolvido durante a gestão de Fernando Haddad. Imagem: Kelly Komatsu.

Os impactos da cooperação internacional entre cidades

Em alguns casos, a cooperação descentralizada, seja por meio das redes de cidades, seja através de outros mecanismos, acaba tendo impactos que vão muito além da troca de experiência, apesar de suas fragilidades. Segundo Kelly, muitas políticas que em São Paulo não eram bem recebidas pela população em geral, fora do país eram reconhecidas como políticas de referência, auxiliando na manutenção dos projetos. “Um exemplo muito claro disso era o ‘De Braços Abertos’. Lá fora é uma política de referência mundial e uma das políticas que mais recebeu delegações interessadas em conhecê-la, o que ajudou muito a fortalecer a política aqui”.

O programa trabalhava com usuários de drogas através da ótica de redução de danos e foi reconhecido em um relatório da Open Society Foundations, que chegou a investir em uma pesquisa visando mostrar como estava o programa. “Usamos esse relatório com dados de uma organização independente, mostrando que o programa estava dando certo”. A pesquisadora cita também como exemplos de referência internacional o Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes, inaugurado em 2014, e o Transcidadania, que visa fortalecer as atividades de colocação profissional, reintegração social e resgate da cidadania para a população LGBT em situação de vulnerabilidade. Esse último também apresentava problemas de recepção por parte da população, que criticava o fato de a prefeitura supostamente estar dando “bolsa para trans”.

Tudo isso sem contar o fato de que as cidades ganham cada vez mais espaço e reconhecimento no cenário internacional. Os próprios Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU têm um objetivo específico sobre cidades, o de número 11. É a primeira vez que aparece um artigo específico para isso, visando cidades resilientes e inclusivas. Além disso, eventos antes integrados apenas por governos nacionais já vêm abrindo mais espaços para os governos locais e a sociedade civil, como foi o caso da Habitat III, ocorrida em 2016, em Quito (Equador), um marco para a cooperação descentralizada.

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