Altas taxas de homicídio entre jovens negros em São Paulo possui raízes históricas

Grandes índices de mortes entre a população negra teria relação com uma série de políticas implementadas no município a partir do século XIX

Imagem: reprodução

“Não houve um esforço real por parte das autoridades para alterar essa situação”, afirma a pesquisadora Claudia Rosalina, da Escola de Ciências, Artes e Humanidades da USP. “Ainda não temos um Plano Nacional de Redução de homicídios de jovens, transparência de dados sobre segurança pública e violência. A atual política é marcada pelo conceito de ‘guerra contra o crime’, que criminaliza e persegue segmentos historicamente excluídos e marginalizados”, declara a pesquisadora.

O encarceramento em massa da população negra e seu extermínio persistem. Segundo dados, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Todo ano, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são mortos. A taxa de homicídios entre esse grupo é quase quatro vezes a verificada entre os jovens brancos. Para Claudia, as estatísticas reforçam a tese de que, de fato, está em curso um genocídio da população negra, o que ela lembra, inclusive, ser uma das constatações do relatório final de uma CPI do Senado que analisa o assassinato de jovens.

Uma pesquisa publicada no ano de 2014 pelo IBGE mostrou que cerca de 30 mil jovens de 15 a 29 anos são assassinados por ano no Brasil, sendo 77% destes, negros (soma de pretos e pardos). A maioria desses homicídios ocorrem nas grandes metrópoles brasileiras, como é o caso de São Paulo. Os dados mostram que a parcela negra da população, de fato, está mais vulnerável aos efeitos da violência urbana que outros grupos étnicos da sociedade. Buscando compreender as causas desse fenômeno, Rosalina produziu um estudo intitulado Territórios de morte: homicídio, raça e vulnerabilidade social na cidade de São Paulo, no qual ela analisa os fatores que contribuem para que os índices de homicídios sejam maiores entre a população negra e, além disso, como se deu o processo que levou este grupo a viver nas regiões mais periféricas e pobres da cidade de São Paulo.

A hipótese defendida pela pesquisadora é a de que a maior vitimização por homicídios da população negra nos territórios mais vulneráveis em São Paulo não é um fato pontual, mas sim algo construído sistematicamente e que, para seu entendimento, deve ser analisado de forma articulada com outras questões, como a pobreza, a vulnerabilidade social, políticas públicas e direito a cidade.

Para compreender todo esse processo, é necessário analisar o passado. Durante a segunda metade do século XIX, foram implantadas no município de São Paulo diversas políticas segregacionistas, as quais podem ser consideradas a causa inicial (e principal) da maior concentração da população negra nas áreas periféricas do município, como se vê atualmente. “As políticas de segregação em São Paulo tiveram início no período que o sociólogo e historiador Clóvis Moura chama de Escravismo Tardio, que compreende o período entre o fim do comércio de escravos em 1850, a abolição da escravatura em 1888 e também o pós-abolição”, conta a pesquisadora. “Para preservarem os seus interesses e coibirem a inserção social dos escravos, as elites paulistanas criaram mecanismos reguladores e controladores deste processo”, completa. O principal destes mecanismos foi a Política Imigrantista, com a qual iniciou-se um processo de importação de trabalhadores livres da Europa e que, por consequência, gerou um desequilíbrio na oferta de força de trabalho na região, prejudicando, por sua vez, os trabalhadores negros, dificultando seu acesso à terra e ao emprego nas fábricas e fazendas.

Outro desses mecanismos foi a proibição da instalação de cortiços na zona central de São Paulo a partir de 1886 e que foi reiterada pelo Código Sanitário de 1894, o qual, por sua vez, permitia a construção de vilas operárias “higiênicas” fora da zona de aglomeração urbana. Os cortiços eram os locais onde concentravam-se a maior parte da população negra naquela época.

Ocorrem posteriormente, mais especificamente entre os anos de 1899 e 1911 – os quais correspondem ao período de gestão do prefeito Antônio Prado – os chamados “trabalhos de melhoramentos da cidade”, os quais consistiam no alargamento e na construção de ruas, praças, transferência e demolições de mercados. Essas ações, além de causarem inúmeros desalojamentos, provocaram o surgimento de um mercado imobiliário dual, no qual negros e pobres que, até então, viviam nesses locais, foram expulsos do Centro e acabaram tendo como única saída o refúgio nas periferias. “Essas estratégias contribuíram para a produção e reprodução de desigualdades raciais e espaciais, que até hoje se perpetuam”, afirma a pesquisadora.

Não à toa, atualmente, a maioria da população negra vive nos extremos do município, principalmente nos distritos de São Rafael, Grajaú, Jardim Angela, Capão Redondo, Vila Andrade, Jardim Helena, São Miguel e Vila Jacuí.

Em sua pesquisa, a autora também relaciona a situação dos jovens negros e a violência que os cerca com o Neoliberalismo. Para fazer tal relação, Claudia diz ter utilizado como referência os trabalhos do filósofo camaronês Achilles Mbembe, da pesquisadora Ana Luisa Flauzino e do professor Dennis de Oliveira. “No Brasil, a adoção do neoliberalismo, além de enfraquecer as políticas públicas, aumentou o processo de exclusão que já existia e acentuou as condições que levam a produção da morte nas periferias”, diz a pesquisadora. “Há nesse contexto, a crescente necessidade exclusão social e eliminação física dos grupos que não se adaptam à agenda neoliberal”, completa.

Segundo Claudia, esse processo de exclusão pode ser confirmado quando observa-se a situação em que vive a população periférica, sem a oferta de, até mesmo, os serviços básicos para a sobrevivência. “A produção da morte – ‘o fazer morrer e deixar viver’- se dá pelas condições precárias de vida nas quais vive a população negra nas periferias. Os homicídios, a péssima infraestrutura urbana, a escassez de equipamentos públicos e a violência policial ilustram essa realidade”, afirma.

Entretanto, em certa medida, houve melhorias na situação da população negra e, em específico, dos jovens. Ela atribui isso à maior visibilidade que os empecilhos enfrentados por esse grupo ganharam através das ações do movimento social negro, além de pesquisas e campanhas que tratam da questão do extermínio negro. Ainda assim, a situação não é animadora.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*