Compositores de sambas debateram a regulamentação do trabalho na Era Vargas

Análise de canções escritas entre 1930 e 1943 revela como a questão do trabalho era abordada em sambas

A CLT foi outorgada em 1943, durante o Estado Novo. Créditos: Arquivo Nacional

A Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) representa o processo de regulamentação do trabalho, intensificado somente em 1930, após a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Antes disso, as leis que regiam as atividades remuneradas eram mais pontuais e definiram questões sobre categorias profissionais específicas, como a de crianças e mulheres. Decretada em 1943, em meio à ditadura do Estado Novo (1937-1945), a CLT proporcionou aos trabalhadores direitos em relação à sua jornada, ao salário, ao descanso e, atualmente, passa por alterações diante da reforma proposta pelo governo de Michel Temer.

Em dissertação de mestrado, realizada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, o pesquisador Martin Loffredo Nery apresenta a perspectiva de sambas em relação à nova visão de trabalho que se consolidava. “A ideia foi tentar encontrar uma aproximação da concepção que as pessoas têm [da normatização do trabalho] por meio da produção de canções”, afirma.

A interdisciplinaridade entre direito e música chamou a atenção de Martin ainda quando era estudante da Faculdade de Direito (FD) da USP, época em que realizou uma monografia sobre o assunto. No mestrado, analisou a fundo as canções de Ismael Silva, Noel Rosa e Wilson Batista, compositores que, além de atuarem em períodos diferentes, trouxeram em suas obras a questão da labuta. O primeiro teve seu auge entre 1929 e 1932, enquanto o segundo parou de compor em 1936, com picos em 1933 e 1934. Já Batista é o mais novo entre eles, atuando até 1940.

Créditos: Larissa Fernandes

O pesquisador fez o recorte temporal entre 1930 e 1943, quando se intensificou a normatização do trabalho. Ele explica que um dos focos de sua pesquisa foi analisar como a malandragem era abordada nos sambas. Como apontado por Nery, “a malandragem é um grande termo para todas as visões que não são abarcadas pela CLT: o subemprego, o bico, o vadio propriamente dito, que não faz nada, o que vive do jogo ou do crime. Para todo esse tipo de prática, dei o nome de malandragem a partir do que vi nos sambas”.

Enquanto as músicas utilizavam a ideia de malandragem como sinônimo de “vadiagem”, no Direito, o segundo era considerado crime, estabelecido no Código Penal de 1890, e mantido na Lei de Contravenções de 1941. Na dissertação, Nery apresenta o ponto de vista jurídico sobre o termo a partir da bibliografia da época.

Por meio da análise das letras dos compositores, Nery notou que “há tanto sambas que apoiam a visão celetista do trabalho (que o Estado Novo vai buscar implementar coercitivamente) quanto sambas que rejeitam a atividade, de diversas formas”. Para ele, apesar da influência da censura presente no regime ditatorial de Vargas, não é possível afirmar que os compositores se posicionaram apenas de acordo com o que os censores lhe impunham. Antes mesmo do Estado Novo, já havia canções com uma visão positiva sobre a atividade profissional.

As contradições sobre o trabalho apareceram nos próprios compositores, que chegaram a mudar de posicionamento ao longo do tempo. “O repertório do Wilson Batista é o que mais traz essa visão celetista. Ele cantou tanto o não trabalho e a malandragem e, no final da década, passa a valorizá-lo”, comenta o pesquisador.

Créditos: Larissa Fernandes

A conclusão de Nery aponta que, apesar do apoio ao trabalho através das letras, o ritmo do samba parece significar o oposto. “Procurei tentar pensar quais são as implicações do ritmo querer dizer exatamente o contrário da letra. O ritmo do samba convida a outra coisa que não trabalhar, isso na mesma canção, em uma contradição irresolvível”, completa.

Martin acredita que a sua dissertação contribua para uma literatura que relaciona o Direito com as Artes, aproximando-o do cotidiano da população. Ele ressalta a riqueza material a que teve acesso, demonstrando as amplas visões sobre a CLT e o quanto a normatização do trabalho serviu como inspiração para compositores.

 

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