Países emergentes aumentam participação em doações para assistência humanitária

Pesquisadora da USP analisou o caso desses países a fim de visualizar parte do panorama sobre a questão

Em 2010, o terremoto que atingiu o Chile deixou 720 mortos. Após reunir-se com a presidente do país, Michelle Bachelet, Lula autorizou o envio imediato de cooperação humanitária ao Chile. Imagem: Silva Lopes/CGFome MRE.

As doações dos países ricos para o sistema humanitário internacional são ainda muito superiores às dos países emergentes e novos doadores. O volume de ajuda dado por esses últimos, no entanto, tem aumentado nos últimos anos e a liderança no nível do compartilhamento de ideias é considerável. Tal cenário pode fazer com que, em um futuro próprio, esses países tenham mais voz e capacidade de influenciar no sistema vigente.

Essas são algumas das conclusões da tese de doutorado de Patricia Vilarinho Tambourgi, desenvolvida no Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. Com o título “O sistema humanitário internacional no século XXI: os doadores não DAC  e o caso brasileiro”, a pesquisa se debruçou sobre um grupo específico de países, formado pelos Estados doadores que não integram o grupo DAC (Development Assistance Committee), a fim de traçar o volume de recursos doados por eles no âmbito da assistência humanitária internacional.

O DAC é um comitê que trata de todos os temas relacionados à ajuda externa no interior da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. A instituição existe desde 1960 e foi inicialmente composta por Estados europeus, incluindo posteriormente novos países, como Estados Unidos e Japão. Por não ser um comitê obrigatório, o DAC reúne 30 dos 35 países da OCDE, no interior do qual são tratadas as temáticas de empréstimos, ajuda para o desenvolvimento e assistência humanitária internacional, foco da pesquisa de Patrícia.

Como o DAC possui regras específicas de publicação de dados, a organização mantém um banco de informações padronizado e homogeneizado sobre as doações de assistência humanitária. O mesmo, contudo, não ocorre com os países que não integram o comitê. Ao iniciar sua pesquisa, Patrícia constatou haver basicamente estimativas sobre esses. “Que esses países não-DAC participam como doadores é meio consenso, mas quanto? De que maneira eles teriam força para trazer mudanças para o sistema humanitário como um todo?”

A pesquisadora explica que utilizou o termo “não-DAC” porque precisou reunir em uma única categoria um grupo extremamente heterogêneo, que engloba cerca de 160 países. “Falar que eles são doadores emergentes ou novos doadores como é o caso do Brasil pode não representar todo o grupo, mas só uma parte dele. Por isso a necessidade do termo não-DAC.”

O objetivo da pesquisa é relevante para o contexto atual pois os países do grupo DAC são os maiores doadores de assistência humanitária do mundo. Logo, há um grau de dependência considerável dos países e das organizações internacionais que recebem recursos frente a esse grupo. Justamente por isso, a existência de outros doadores é tão importante no sistema internacional, pois além de gerar menos dependência frente a essa ajuda, proporciona mais democracia no sistema internacional. A pesquisadora apresenta, contudo, que como resultado foi constatado que esses países ainda têm pouca força em termos de recurso, mas que esses vêm crescendo e se desenvolvendo.

Christina Farah, do ACNUR, fala com um grupo de crianças no Nour Beach House em Chekka, Líbano. Imagem: UNHCR/S. Baldwin.

A falta de dados e os caminhos da pesquisa

Patrícia explica que, no início de sua pesquisa, faltavam dados relacionados ao volume de recursos doados pelos países não-DAC, dificultando a análise do impacto desse grupo no sistema internacional. Isso porque muitos países divulgam apenas parcialmente ou não publicam essas informações. “São Estados, em geral, que ainda recebem ajuda humanitária. Ou seja, eles recebem e doam ao mesmo tempo, o que faz com que tenham medo de reportar a totalidade de recursos. A transparência, então, traria um problema com a população no cenário doméstico, já que depois teriam que mostrar para a sociedade que estão doando muito dinheiro.“

Além disso, havia o problema de que cada país entende assistência humanitária de uma maneira diferente, o que impediria dados comparáveis. Um dos motivos para isso é que o termo se expandiu ao longo dos anos. Inicialmente, o conceito estava ligado à prestação de socorro à vítimas de guerra. Posteriormente, contudo, há uma evolução da agenda do Direito Humanitário Internacional, que passa a lidar não só com combatentes mas também com desastres naturais. “Hoje a Organização das Nações Unidas (ONU) entende o termo não só como algo pontual e para alívio imediato, mas também no sentido de prevenção e reconstrução.”

A saída encontrada por Patrícia nesse caso foi focar no âmbito das organizações internacionais ligadas ao sistema ONU. Nesse modelo, um Estado doa para uma organização e é ela que faz o repasse do recurso para um outro país, em uma modalidade chamada de doação multilateral. Além desse tipo, existem ainda as doações bilaterais, de país para país, e as triangulares, nas quais um Estado pode se combinar com outro para ajudar um terceiro.

O foco escolhido pelas doações multilaterais se deve, portanto, à vantagem de oferecerem dados mais confiáveis, o que nem sempre acontece na modalidade bilateral, e serem mais consolidadas diferentemente da triangular que é uma forma recente. Logo, a divulgação dos dados não dependeria da vontade dos Estados, mas sim da transparência da organização.

Nesse âmbito, a pesquisadora selecionou quatro instituições para o estudo: o Programa Mundial de Alimentos (PMA), que lida com a questão da fome; a Unicef, focada em crianças e mulheres; a ACNUR, de imigrantes; e o Cerf, o Fundo Central de Resposta a Emergências. “Esses são os principais fronts de assistência humanitária da ONU e nos quais podia encontrar dados completos para todos os países. Portanto, poderia ter acesso a dados comparáveis.”

A pesquisadora, no entanto, precisou passar por um última barreira, que era o acesso ao dados dessas próprias organizações. “As agências da ONU estão se engajando há cinco ou seis anos em um processo de transparência, que está se fortalecendo nos últimos anos. Mas eles não tem tudo fácil ainda, já que estamos falando de organizações que têm décadas de existência. Sem contar que elas não tinham a cultura da divulgação e da publicização, justamente porque é algo que vem crescendo recentemente.”

Apesar das dificuldades, Patrícia conseguiu aos poucos uma rica massa de dados, chegando até o ano de 1998, como é o caso do PMA. A partir disso, a pesquisadora confirmou sua hipótese de que pelo menos em termos de aporte de recursos, os países não-DAC não trariam mudanças significativas para o sistema humanitário, em termos de relação de poder. “Isso se formos olhar só em termos de proporção. Mas se observarmos as nuanças, é possível perceber que existe um crescimento gradual, lento e relativamente significativo da participação deles nessas entidades humanitárias”.

Ela expõe que em 1998, a participação desses doadores era de menos de 1%. Contudo, já em 2008 essa porcentagem chega a 15 %. “Em 2015, eles estavam na faixa dos 10% a 13%. Logo, existe um crescimento que sai de menos de 1% e já chega na faixa dos 10%. No UNICEF, em 2012, chegou a quase 19%. Então, é possível se perceber um crescimento de fato, ainda que lento.”

Avião da Força Aérea Brasileira com doações para a Faixa de Gaza. Imagem: CGFome.

O caso brasileiro

O Brasil, um país não-DAC, começou a ser doador assíduo de assistência humanitária internacional em 2006, durante o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva. A ação nasceu no seio da política externa do ex-presidente Lula e de seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. A nova diretriz adotada no período priorizava as relações com os países em desenvolvimento, em especial os da América Latina. Nesse período, a assistência humanitária brasileira foi capitaneada pela Coordenação-Geral de Cooperação Humanitária e Combate à Fome, a CGFOME, departamento do Ministério da Relações Exteriores, criado em 2004 no qual Patrícia trabalhou por um mês.

Com base nos dados coletados, de mais fácil acesso comparados a outros países não-DAC, a pesquisadora constatou que a partir de 2006 as ações humanitárias do Brasil se tornam mais frequentes. “Existiam ações em anos anteriores, mas sem uma regularidade. A partir de 2006, além da frequência, o número de ações e o volume de recursos começam a crescer, perdurando assim até 2012, quando há o pico das ações humanitárias internacionais brasileira que chegaram a 78 milhões de dólares.”

Patrícia explica, no entanto, que a partir do governo Dilma se vê uma derrocada dessa ajuda externa: em 2015, o montante de recursos foi de apenas 7,8 milhões de dólares, ou seja, 10% do volume de 2012. “Por isso digo que o Brasil foi um doador emergente, já que ao invés de continuar a ampliação do programa, o que aconteceu foi um abandono político e econômico das ações brasileiras.”. Ela explica que essa situação está relacionada ao momento político, de crise institucional, que o país vive atualmente somado a recessão econômica, que restringe o orçamento e a capacidade material do Brasil agir. “De maneira geral, a política exterior brasileira, e em particular o nível da cooperação, está com orçamento limitado. Logo, a assistência humanitária estão escanteadas. Além disso, principalmente após a saída da Dilma, o tema da cooperação perdeu força.”

Relembrando discussões polêmicas da época, a pesquisadora afirma que mesmo que parte dos recursos tenha sido direcionado para países latino-americanos durante o governo Lula, a decisão de alocação desses não parece simplesmente seguir diretrizes de alinhamento ideológico. “Houve muito dinheiro para o Haiti, por exemplo, que, na realidade, era um vácuo de poder. Teve dinheiro para Cuba, mas pouco. Na verdade, o que pareceu é que a alocação de recursos tentou seguir uma lógica pautada na necessidade.” No entanto, Patrícia salienta que houve casos em que o Brasil justificou doações para Cuba sob a perspectiva de ajuda ao combate à insegurança alimentar, sendo que naquele ano, o país caribenho não estava entre os primeiros colocados do ranking desse problema.

Analisando o caso brasileiro, ela também percebeu que, apesar de os países não-DAC serem ainda minoritários em termos de recursos, eles têm contribuído consideravelmente no caminho das ideias, que poderia representar um impacto maior do sistema. Quanto a isso, a pesquisadora expõe que é notória a internacionalização do programa Fome Zero, implementado no governo Lula, e adaptado para as realidades nacionais de vários países. “As organizações receberam de braços abertos o programa, que é elogiado no cenário internacional como modelo de combate à fome.”

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