Programas de cooperação comprovam interesse da França pela América do Sul

Pesquisador da USP analisa os casos dos projetos Math-AMsud e STIC-AmSud a fim de perceber as implicações para a região

O Chile é o país onde está sediada atualmente a gestão do programa France Am-Sud, voltado exclusivamente para a América do Sul. Na imagem, o Palácio de La Moneda, um dos principais símbolos da capital chilena. Foto: JorgeGG.

A França parece possuir, ainda hoje, um interesse especial pela América do Sul. Ao menos é o que demonstra a existência de dois programas de cooperação franceses voltados exclusivamente para a região: os programas Math-AmSud e STIC-AmSud, criados, respectivamente, em 2006 e 2008. Os projetos são tema da pesquisa de mestrado de Paulo Henrique Ribeiro Neto, do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da USP.

Com o título “As consequências da cooperação científica francesa France-AmSud na integração de cientistas sul-americanos” e sob orientação da professora Maria Cristina Cacciamali, a pesquisa enfoca os programas a fim de estudar a presença francesa na região. Os dois projetos fazem parte do braço de cooperação científica do France-AmSud, um corpo diplomático independente francês que atua no subcontinente desde 1990.

O órgão, segundo o próprio France-AmSud, tem o objetivo de promover os ideais e aumentar a presença francesa no continente, além de observar e cooperar com o processo de integração regional. Paulo Henrique relata que, ao pesquisar materiais produzidos sobre a delegação, não encontrou nada, mesmo ela atuando há 27 anos no continente. Justamente por isso, o objetivo geral da pesquisa é trazer à tona as consequências da atuação dessas duas iniciativas científicas da França, que é um agente externo e um dos ex-colonizadores da região latina-americana, na integração dos cientistas sul-americanos.

Ele explica também que a temática da cooperação científica é ainda pouco estudada no âmbito das Relações Internacionais, o que o impulsionou em direção ao tema. “Penso que, enquanto pesquisadores e cientistas, temos sempre que ir pelo caminho do inexplorado. É importante falar do que já foi pesquisado, mas também encontrar o novo, as novas temáticas e os novos olhares. E nesse quesito tanto a France-AmSud quanto olhar para essa relação da ciência como instrumento de política internacional é extremamente relevante.”

Os programas franceses de cooperação científica

Math-AmSud e STIC-AmSud são iniciativas de promoção a pesquisas científicas em projetos multilaterais, específicas para a América do Sul. “Elas buscam fomentar, de alguma forma, a criação de redes entre pesquisadores das duas regiões, da América do Sul e da França, e que promovam algum tipo de integração”, explica Paulo Henrique. Para participar de uma dessas iniciativas, portanto, um projeto precisa ter pelo menos um pesquisador da França e dois pesquisadores de países distintos da América do Sul.

A justificativa francesa para a atuação na região, segundo o pesquisador, está atrelada ao fato de que esta seria uma região estratégica para o país, na qual enxerga um campo de possibilidades emergentes no âmbito científico. “Mas acho que podemos falar que é uma tentativa de promover a manutenção da influência cultural e científica que a França tem na nossa região já há muito tempo. Se observarmos, na própria USP, os primeiros professores eram franceses, além de inúmeros outros exemplos. Então, há toda uma história francesa de presença na América do Sul e de influência na questão científica.”

No período entre 2012 e 2015, foco da pesquisa, os dois programas fomentaram e concluíram 39 projetos, sendo 26 do STIC-AmSud e 13 do Math-AmSud. Deles participaram, além da França, todos os países da América do Sul, com exceção de Bolívia, Suriname e Guiana. Para a pesquisa, foram escolhidos proporcionalmente três projetos desse total: dois estudos de caso sobre o STIC-AmSud, que é o programa que tem mais financiamentos, e um sobre o programa Math-AmSud. Após a seleção, Paulo Henrique viajou para Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai a fim de entrevistar pesquisadores que se envolveram com os projetos.

Detalhe de livro contendo o contrato de Pierre Monbeig, um dos intelectuais franceses que estiveram na Universidade de São Paulo entre 1934 e 1944. Imagem: Marcos Santos/USP Imagens

Como se dá a atuação francesa no continente

Com base nos materiais coletados, a pesquisa buscou testar três hipóteses. A primeira delas, baseada principalmente em teorias críticas e teóricos latino-americanos vinculados a elas, aponta para a noção de que se deveria desconfiar da atuação francesa na região. “Essa hipótese parte da noção de que a França teria por objetivo que os pesquisadores sul-americano estivessem mais próximos da produção científica francesa e não necessariamente próximos entre si, ao final do projeto. O que promoveria uma manutenção da lógica de produção científica no globo como ela é hoje.”

A segunda hipótese, voltada para uma ideia mais positiva das relações científicas mundiais, entende que essa lógica não precisa ser necessariamente excludente. “Ao final da participação do programa, o pesquisador poderia estar tanto mais integrado com a França, quanto com seus pares na América do Sul. Logo, sob essa ótica, esse tipo de iniciativa poderia cumprir o objetivo da delegação France-AmSud na região, que é não só promover a presença científica francesa, mas cooperar para que sejamos mais integrados.”

Por fim, a terceira hipótese, mais pessimista, pauta-se na noção de que não haveria integração possível nesse programa, por ele ser de curta duração, com projetos de apenas dois anos. “Sob essa ótica, pesquisadores saem desse programa da mesma forma que entraram: não integrados nem com a França, nem com outros países da América do Sul.”

Mesmo que ainda não finalizada, a análise aponta que as três hipótese foram constatadas a partir dos estudos de casos. “A pesquisa científica é interessante porque eu pensava no início que uma delas iria ser claramente proeminente. Mas no fim, as três apareceram de alguma forma.” Paulo Henrique relata que houve inclusive casos de pesquisadores que participaram do programa e hoje não dialogam com ninguém, que era a hipótese menos esperada.

Ainda assim, o pesquisador salienta que talvez a hipótese que mais se destaca é a segunda, já que há casos nos quais claramente houve integração com a França e com a América Latina. Além disso, ao longo do estudo, uma outra possibilidade surgiu: a  integração com a América do Sul pós-projeto sem uma integração com a França. “Há pesquisadores sul-americanos que se conheceram nesses projetos e hoje trabalham juntos, ainda que não tenham mais qualquer contato com a França.”

Ele explica também que a primeira hipótese, da colonização, é mais problemática de ser comprovada, já que é muito difícil se identificar claramente uma relação de subordinação entre pesquisadores. Um dos motivos está ligado ao fato de ele ter entrevistado pesquisadores que já haviam finalizado suas participações no programa e, portanto, baseado em relatos, o que dificulta a observação do fenômeno.

Além disso, Paulo Henrique aponta que outra questão que pesa é o fato de vivermos em um mundo globalizado e cada vez mais conectado, que dificulta qualquer trabalho baseado em um dicotomia muito forte entre colonizador e colonizado. “Para dar um exemplo, em um dos casos, o pesquisador que representa a instituição sul-americana é de origem europeia e trabalha aqui na América do Sul, enquanto há um outro pesquisador representando uma instituição francesa, mas que é de nacionalidade sul-americana. Nesse caso, quem está colonizando quem e onde está a relação de colonização? É muito difícil de se apontar.”

O pesquisador salienta ainda que, embora a iniciativa seja francesa, os países participam voluntariamente dela, já que suas respectivas agências nacionais de pesquisa têm que concordar com os projetos e aprová-los. “A iniciativa continua sendo francesa, assim como a maior parte da gestão, mas os países da região também investem dinheiro nisso. Então, não é só a França vindo aqui e impondo algo. Os países também compram a ideia.”

A delegação France-AmSud

Apesar de o interesse inicial ter sido estudar a delegação como um todo, Paulo Henrique precisou optar por um dos ramos da France-AmSud: a cooperação científica. Além desse, contudo, a instituição possui outras três áreas de atuação: a cooperação cultural realizada através de parcerias com outros institutos franceses na região, como a Aliança Francesa ; a cooperação com a Cepal, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe; e o apoio a cooperação descentralizada cuja ideia central é promover encontros entre profissionais de instituições não governamentais e do setor privado, para que a cooperação não dependa apenas dos Estados.

Apesar dessas divisões, o pesquisador expõe que “a função basicamente da delegação são duas, que podem ser englobadas em uma atuação mais cultural e a atuação científica”. Justamente nesse viés científico, além dos programas estudados por ele – o Math-AMsud e o STIC-AmSud, que são iniciativas próprias do France-AMSud, a delegação auxilia burocraticamente em duas iniciativas da União Europeia: o programa Alfa e Erasmus Mundo.

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