Debate internacional influencia políticas de saúde para mulheres no Brasil

Ano de 2011 marcou mudança do paradigma de saúde integral para o materno-infantil. “Um retrocesso”, caracteriza cientista política

Germana Soares, 24 anos, mãe de Guilherme, portador de microcefalia. Foto: Ueslei Marcelino/UNICEF

Mais de metade da população brasileira, as mulheres historicamente reivindicam ao governo o aprimoramento da rede de saúde pública. Uma recente pesquisa produzida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP revela que, quando o assunto são as políticas de saúde específicas para elas, três atores atuam em sua formulação: os discursos internacionais, o Estado e os movimentos feministas e de mulheres.

A cientista política Layla Pedreira Carvalho afirma que os discursos internacionais são frequentemente mobilizados pelos movimentos sociais para fazer com que o Estado seja responsivo nas questões em que tem tendência de ser displicente — como é o caso da atenção à saúde das mulheres. “Se você tem um compromisso internacional firmado pelo Estado, é mais fácil cobrá-lo”, diz.

No entanto, ela também ressalta que, ao mesmo tempo em que abrem possibilidades para mudanças e avanços nas políticas públicas, esses discursos podem representar grandes desafios. “Os discursos internacionais ficam como um limite, e não um horizonte. Podem tanto ser usados para avançar direitos, como também para restringi-los.”

A pesquisadora cita como exemplo os Objetivos do Milênio, compromissos firmados entre 191 países, entre eles o Brasil, em setembro de 2000. De acordo com Carvalho, eles foram influenciadores de uma mudança significativa no paradigma da atenção à saúde das mulheres no país, invisibilizando algumas pautas caras aos movimentos feministas, como o direito ao aborto seguro e as diferenças sócio-econômicas que aprofundam desigualdades entre negras e brancas.

Em sua tese de doutorado Da esterilização ao Zika: interseccionalidade e transnacionalismo nas políticas de saúde para as mulheres, ela historicizou a forma como esses discursos internacionais se colocam no cenário brasileiro e como a área técnica de saúde da mulher do Ministério da Saúde tem atuado, em especial, nas últimas três décadas.

Para a produção do trabalho, a pesquisadora viajou para a região metropolitana de Recife por dois meses e passou uma semana no sertão pernambucano, onde pode conviver com a luta de um dos grupos mais protagonizados em seu trabalho: o de mulheres mães de bebês com microcefalia em função do vírus zika.

Saúde da mulher

Carvalho explica que o ano de 2011 marcou uma mudança de paradigma nas ações governamentais das políticas de saúde para mulheres. Neste ano, foi criada a Rede Cegonha, nova estratégia do Ministério da Saúde. “Foi um retorno ao paradigma materno-infantil”, caracteriza a cientista política, referindo-se a uma política voltada para a atenção aos momentos da gravidez, parto e puerpério.

“O programa não debate métodos contraceptivos, nem as mortes por abortamento, que são a quinta causa de mortalidade materna”, critica. “Existe um diferencial de mortalidade materna que também não é considerado: mulheres grávidas negras morrem muito mais que brancas por problemas que são de racismo institucional e a questão racial não é uma das preocupações do Rede Cegonha.”

A pesquisadora caracteriza a política como um retrocesso, mas ressalta que o programa valoriza, por exemplo, a humanização do parto — debate caro à luta das mulheres. “O problema é que se deixa de visibilizar certos problemas relacionados à saúde da mulher e se afasta dos movimentos que estavam apoiando a política anteriormente”, explica.

Ao elencar críticas ao Rede Cegonha, ela toma como base o paradigma anterior que predominava nas políticas de saúde para mulheres, caracterizado como de “saúde integral”.

“De 1983 até 2011, existe um debate que tem como foco a saúde integral da mulher. O principal programa é o PAISM (Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher), elaborado em 1983. Em 2004, há uma reedição dele, a PNAISM (Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher), construída com o debate do Estado e dos movimentos de mulheres”, explica.

Carvalho afirma que o grande motivador que está por trás do desenho do Rede Cegonha são questões políticas. “Nas eleições de 2010, tem aquele debate sobre aborto em que a Dilma precisa fazer um compromisso de que não vai fazer nada em relação a isso”, explica. A isso se somou a eleição de um Congresso Nacional majoritariamente conservador.

Com a mudança de paradigma em 2011, o foco da abordagem de saúde passa a ser a gravidez e a mortalidade materna. “O Estado deixa de estar preparado para debater outras questões que venham a afetar a saúde das mulheres”, pontua Carvalho.

Vírus zika

Um exemplo de questão que demandava rápida resposta em políticas públicas de saúde, aponta a pesquisadora, foi a epidemia do vírus zika que acometeu muitas mulheres mães, em especial do sertão nordestino. Nesse caso, o discurso internacional também teve peso, mas positivo.

“O zika estava meio silencioso enquanto só estava acometia as mulheres do sertão nordestino. Na hora que vira uma emergência de saúde internacional e que ameaça que as Olimpíadas não aconteçam no Brasil, temos respostas mais sistemáticas do governo brasileiro”, comenta Carvalho.

De acordo com a pesquisadora, a forma como a área técnica de saúde da mulher lidou com a epidemia do zika foi reflexo do abandono dessa abordagem integral da saúde em 2011. Isso porque ela se exime da responsabilidade de pensar políticas específicas para as mulheres afetadas.

A epidemia foi traduzida pelo governo brasileiro como um esforço ainda mais amplo de combate ao mosquito Aedes aegypti — transmissor do vírus zika — e de abertura de vagas preferenciais para as pessoas contaminadas. “Não há o desenvolvimento de nenhuma política nova, nem para as mães de bebês com microcefalia e nem para combater a epidemia”, aponta.

Ao invés de medidas que evitem que os mosquitos piquem as mulheres, ou que garantam os direitos a acesso à serviços para as contaminadas e seus bebês, grande parte da orientação foi para que as mulheres não engravidassem, ferindo seus direitos reprodutivos.

A insuficiência das ações governamentais colocou nas costas das mulheres o peso de lidar com o zika. A muitas delas, Carvalho atribui o termo de “maternidade revolucionária”. “Essas mulheres tem uma luta constante para conseguir criar os filhos e ter acesso às políticas.”

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