Arqueologia pública humaniza a pesquisa do passado

Aproximando-se dos moradores do sítio, Bruno Ranzani da Silva estuda relações sociais de ontem e hoje

Gravura de Debret (1768-1848), representando uma charqueada de Pelotas (Imagem: Reprodução)

Arqueologia é tida como uma ciência do pretérito. Seu objeto de estudo é a materialidade deixada por sociedades pregressas, aparentemente distantes da realidade atual. É uma ciência considerada pura. Mas Bruno Ranzani da Silva, longe da imagem do arqueólogo solitário que pincela ossadas em paisagens ermas, desafia essas concepções com a tese “Descobrindo a Chácara e a Charqueada, pela arqueologia pública”, pelo Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE).

Arqueologia pública

Em um contexto de grandes obras de engenharia, no Brasil dos anos 70, surge o questionamento sobre como zelar pelo patrimônio arqueológico. “Uma legislação específica sobre o licenciamento ambiental, resolução nº 1 de 1986 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, dá diretrizes básicas para o processo de licenciamento ambiental”, conta Bruno. Com esse viés ambiental, a arqueologia pública busca divulgar e compartilhar o conhecimento arqueológico com comunidades envolvidas na pesquisa. Além disso, a própria interação com grupos diferenciados impacta nos procedimentos de investigação.

Bruno emprestou da antropologia a metodologia etnológica. “É um jeito de observar e participar de relações sociais, de entender e registrá-las como realmente são”, explica. Ele buscou mapear vínculos que envolvem cultura material no presente, “como os moradores do sítio arqueológico se relacionam com a equipe de arqueologia e com o próprio sítio”. A equipe encontrava coisas que não pareciam relevantes arqueologicamente, mas que para a comunidade eram materialidades relevantes.

O método consiste na observação participante e descrição densa. Observação participante consiste em estar presente e integrar-se às relações sociais que se quer estudar. “Não cria um registro de uma pessoa de fora, mas um registro humanizado, de um ser social”. A descrição densa é o registro do máximo de detalhes possível, já que muitas interpretações podem escapar. Bruno afirma que a proposta é criar um documento que possa ser usado por outros pesquisadores no futuro.

Para o arqueólogo, a etnologia contribuiu para responder suas demandas de arqueologia pública, para entender o impacto de seu trabalho na comunidade local. “Às vezes quando estamos com a cabeça literalmente enfiada em uma quadrícula, quando estamos trabalhando só arqueologicamente, não olhamos para as pessoas ao nosso redor”.

O patrimônio arqueológico

“Um dos primeiros conflitos que encontrei desde o mestrado foi entre arqueologia, Estado e patrimônio”, conta Bruno. Ele, como profissional, participa da gestão do espaço público, associando-se à autoridade. O Estado é uma instância que gesta o coletivo, garante condições de bem-estar, mas, quando isso não ocorre, a arqueologia pode ser instrumento de oposição.

Mapa anexo da tese de doutorado de Ranzani, representando charqueadas de Pelotas, dentre as quais Santa Bárbara, seu foco (Imagem: Banco de Dados do LEICMA, 2012)

O pesquisador dá o exemplo da Comissão Nacional da Verdade, na qual se dá uma arqueologia contra o Estado. Um conjunto de arqueólogos trabalha para identificar responsáveis pelos crimes contra opositores políticos durante a ditadura civil-militar. Por outro lado, há aqueles que trabalham dentro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), pela proteção do espaço arqueológico. Bruno diz ter uma responsabilidade cívica e social com a sociedade através do patrimônio: o que pode ajudar a criar e preservá-lo.

Arqueologia do presente

O pesquisador aponta duas áreas relevantes da atualidade que podem ser afetadas pela arqueologia: a tecnologia e o engajamento social. As sociedades capitalistas são organizadas através da efemeridade, em um ciclo de consumo e descarte que contribui para a alienação da origem e destino da materialidade. “Pensando em uma lógica de sustentabilidade, a arqueologia tem muito a contribuir por ser uma disciplina muito preocupada com a tecnologia no sentido do saber fazer”: como faz, quem faz, quem produz, como produz, como a produção está associada ao modo e qualidade de vida.

Já a questão do engajamento social se relaciona ao estudo de grupos historicamente periféricos. “A gestão do espaço e memória, visada pela arqueologia pública, deve ser socialmente engajada e preocupada com o impacto que tem na vida das pessoas”, afirma Bruno. Um dos focos de sua pesquisa foi o tema do machismo, levantado pelas mulheres da Chácara. Eram dona Angélica, sua mãe e sua avó que trabalhavam na fazenda, “que colocavam a Chácara e os mecanismos para funcionar, ao contrário do que outras pessoas falavam”. Ele ressaltou que a problemática poderia ter sido melhor explorada por uma arqueóloga, mas que aprendeu muito com suas interlocutoras. “As tecnologias utilizadas são uma maneira de demonstrar que não são segundo plano: são agentes no cotidiano”.

Bruno pretende continuar pensando diferentes maneiras de engajamento social, como a arqueologia queer, “a arqueologia dentro dos movimentos LGBT, porque me reconheci como homossexual assumido e quero justamente usar essa empiria para trabalhar dentro da arqueologia”. Ele conta que um coletivo chamado Arqueologia Transviada está se consolidando, formado por arqueólogos e arqueólogas queer para associar a arqueologia ao movimento social.

“Uma arqueologia socialmente engajada não precisa folhear os restos do passado, pode se preocupar com as tecnologias e os processos de produção no presente, que é algo que faz muita falta no nosso cotidiano”, salienta Bruno. Sua pesquisa é sinal de que o modo de praticar ciências puras está mudando: o empírico está progressivamente ganhando espaço. Munido de pincel e ossadas, mas também de olhos, ouvido e boca, dá passos para consolidar o conceito de arqueologia pública e humanizar objetos de estudo.

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