Ensino de direitos humanos já é realidade em duas escolas da rede pública de São Paulo

Nas atividades didáticas, projeto introduz professores e alunos a experiências que ultrapassam as salas de aula

MPs fiscalizam escolas públicas do país para averiguar as instalações e o atendimento às crianças. Na foto, a Escola Municipal Professor Helena Lopes Abranches, em Gardênia Azul (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Nos últimos anos, um dos compromissos do Núcleo de Estudos de Violência da USP (NEV) tem sido apresentar um projeto de intervenção direta na educação pública. Daí surgiu o Projeto Observatório de Direitos Humanos em Escolas, ou PODHE, saudosista de um projeto de educação em direitos humanos que foi organizado pelo núcleo entre os anos 2000 e 2002, a Rede de Observatório de Direitos Humanos.

Hoje em dia, o PODHE atua na educação formal, trabalhando com crianças e jovens dentro das escolas e em parceria com os professores. O intuito é atingir um número maior de educandos e de definir dentro dessas instituições um “observatório” de direitos humanos: um espaço de observação e discussão sobre direitos e violações a partir do olhar da comunidade escolar envolvida. O público alvo são crianças do 6°ano do Ensino Fundamental II e jovens do 1°ano do Ensino Médio.

“Atualmente o projeto está na parte final da sua fase piloto”, explica Clarice Lopes, pesquisadora do NEV-USP e participante do projeto. O trabalho, que já dura mais de um ano, começou em duas escolas da rede pública, a EMEF Bernardo O’Higgins no distrito do Jabaquara e a EE Amélia Kerr no distrito do Jardim Ângela.

Clarice explica que as duas instituições foram escolhidas por meio de um mapeamento que buscou escolas em áreas onde o NEV tem outras pesquisas atualmente e que são considerados “locais de vulnerabilidade”. Hoje, o projeto já atinge sete turmas, somando por volta de 150 educandos.

“Sempre partimos do olhar e das demandas dos educandos e propomos ações de transformações para as localidades”, explica Clarice. Segundo a pesquisadora, o piloto foi dividido em duas fases. A primeira, voltada à sensibilização da temática de direitos humanos e à observação do espaço interno da escola. Já a segunda, tem tido como objetivo o olhar para as questões que envolvem o entorno escolar.

Os encontros são construídos de forma lúdica. “A educação em direitos humanos não precisa ser algo maçante, pelo ao contrário, deve envolver as esferas dos sentimentos, do corpo, das vivências, memórias e por isso nossa proposta de trabalhar com música, desenho, vídeos, jogos, teatro”, comenta Clarice.

Primeira experiência

Clarice conta de uma ação de transformação de um refeitório de uma escola, no final do ano passado, depois que os professores contaram à equipe que havia um preconceito para com quem comia a merenda escolar. “Para muitos, ‘os merendeiros’ eram alunos sem comida em suas casas, o que se tornava um motivo para chacota e criava a crença de que a comida da escola era sem qualidade”, explica.

A equipe do observatório aproveitou o jornal construído pelos jovens para investigar e fazer reportagens sobre a merenda escolar, conversando com funcionários e alunos da escola. “Os jovens se surpreenderam ao ver que as maiores críticas à merenda vinham de educandos que nunca chegaram a comer a merenda. Houve um impulso interessante para compreender a merenda como um direito à alimentação e à educação de todos e não somente como comida para educandos que não tem acesso a comida em suas casas”, conta Clarice.

Junto com os alunos, uma reforma no refeitório foi organizada. “Colocamos a mão na massa e as paredes, bancos, mesas foram reformadas e pintadas, fizemos um jardim vertical, deixando o local mais aprazível.”

Com a aproximação da Copa do Mundo, a equipe começou a pensar em experiências que dialogassem com o contexto vivido pelos alunos em suas casas. Chegaram à ideia da Copa dos Direitos Humanos. “Temos estudado a situação dos direitos humanos nos países participantes, dando especial atenção a temáticas como igualdade de gênero e o direito à vida”, explica.

“Os educandos foram para quadra jogar futebol, com uma metodologia diferente chamada Futebol Callejero, onde os times mistos de meninas e meninos, são pontuados por critérios como respeito ao outro e às regras, solidariedade e cooperatividade.”

Trabalhando em duas frentes

“Com os alunos mais novos, vemos a necessidade de trabalhar a escuta, a comunicação não violenta e o pertencimento ao grupo e a escola”, explica Clarice. Já com os mais velhos, o projeto tem focado em iniciativas de monitoramento da situação de direitos humanos em seu cotidiano. “Temos feito um jornal escolar e passeios pelo bairro que parecem incentivá-los a pensar o seu cotidiano.”

Mas ainda há onde se avançar. “Nosso ideal era que as atividades pudessem estar mais sintonizadas com o conteúdo visto em sala de aula e com os docentes”, explica. A ideia, ela ressalta, não é atribuir mais tarefas aos docentes, mas contribuir em sala de aula, seja com educadores da equipe, seja com atividades. “Para nós é essencial para que o observatório tenha continuidade na escola, mesmo quando nossa equipe não estiver mais presente naquela instituição.”

Segundo Clarice, no mundo adulto, é comum que os direitos humanos sejam compreendidos como “direito de bandido” ou “ ideologia a ser combatida”. Para ela, é importante que essa percepção passe longe dos professores. Por isso, o projeto não joga um olhar especial apenas sobre os alunos.

Os docentes são peça essencial para que os observatórios funcionem. Não é à toa que a pesquisadora ressalta a importância da percepção e do sentimento de pertença entre os educandos e profissionais, para que eles se envolvam e mobilizem esforços para transformar a realidade em que estão inseridos.

Clarice explica que o projeto tem feito os pesquisadores perceberem, na prática, a importância de trabalhar as relações interpessoais dentro das escolas, relações que muitas vezes são conflituosas. “Já é de conhecimento em diversas áreas como a pedagogia e psicologia a importância do movimento e da percepção do corpo na sala de aula, da baixa produção de longas horas de estudo sentado e puramente intelectual com jovens”, comenta a pesquisadora.  

“Infelizmente, no cotidiano da escola essas questões não são atendidas. Por mais que estas atividades possam “agitar” os educandos e trazer nas primeiras experiências uma insegurança ao docente, vemos que nas oportunidades que temos de trabalhar essas questões, o envolvimento é de outro nível”, explica Clarice.

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