Projeto pioneiro empodera mulheres presas

Edição de organização internacional exerce no cárcere feminino seu primeiro projeto

Imagem: Reprodução.

O Projeto (Re)começos, da Enactus USP São Francisco, atua junto a mulheres presas confeccionando produtos manufaturados. Desenvolvido em 2016, surgiu de maneira espontânea. Um grupo de estudantes da USP formado apenas por mulheres resolveu criar na Faculdade de Direito da USP uma versão da organização internacional, presente em mais de 1650 universidades pelo mundo. Flávia Lara, presidente da entidade, conta sobre a criação: “A ideia surgiu a partir da Natalia Ikeda. Ela tinha um amigo da Enactus Mauá e achou que seria legal trazer para a Sanfran, que é um espaço muito peculiar. Não temos nenhum outro curso, é só Direito.”

Ikeda, durante uma aula, foi até o microfone da sala, explicou o que era a Enactus e perguntou quem estaria interessado. Um grupo de mulheres, que não se conheciam muito na época, demonstrou interesse e assim estava formado o embrião do que é a equipe, que hoje também integra homens.

Apesar da presença 100% feminina na primeira formação ser um acaso, Flávia explica que isso foi muito útil. “A primeira ideia foi fazer um projeto no cárcere feminino. Então, seriam mulheres fazendo projetos para mulheres”, diz. O projeto “(Re)começos” é o atual carro chefe da Enactus USP São Francisco. Seu principal objetivo é o empoderamento de mulheres presas. A ideia, inclusive, foi influenciada pelo GDUCC, grupo retratado em matéria anterior da AUN.

O motivo da escolha de mulheres presas fica claro já no edital do processo seletivo do 2º semestre de 2017: “Essas mulheres são presas, em sua grande maioria, por pequenos crimes relacionados ao tráfico de drogas, em uma tentativa de complementar sua renda. Dentro do tráfico, sempre ocupam posições subalternas, essas fortemente criminalizadas pelo seletivo sistema penal brasileiro”, diz um trecho do edital. A maior parte delas são mães solteiras e provedoras do lar, negras e marginalizadas, das quais apenas 50% concluem a educação fundamental básica. Naiara Sandes, vice-presidente da equipe, comenta: “Espera-se das mulheres um papel de ser mãe, de estar em casa. As visitas aos homens na prisão são feitas por mulheres, mas elas quase não recebem visitas. Já existe um impacto na própria situação da prisão.”

Ao longo da entrevista, é reiterado diversas vezes o quão difícil é a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho futuramente. Um dos objetivos chave da Enactus é recuperar a autoestima das participantes. “Nós não estamos lá para que elas saiam da Penitenciária e façam bolsas ou joias. Estamos lá para que elas possam ver que fizeram um produto que vendeu e do qual as pessoas gostaram. A ideia é que elas percebam que são capazes”, diz Flávia.

Nas duas primeiras edições do projeto, as mulheres que participaram foram as da Ala Materna. “O estigma dessa ala é ainda maior do que se vê nos demais pavilhões da própria penitenciária feminina, que é ainda maior em comparação com o das penitenciárias masculinas”, diz Naiara. As participantes confeccionam produtos cujo lucro da venda é revertido para elas.

A próxima edição do (Re)começos será feita no próprio Pavilhão, ao invés de na Ala Materna. Em fevereiro deste ano, o Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) fez com que o Supremo Tribunal Federal concedesse um habeas corpus coletivo a todas as mulheres presas grávidas ou com filhos de até 12 anos do Brasil. A Ala Materna ficou esvaziada — fato que a Enactus comemora. O projeto, então, vai passar a ser uma parceria entre a equipe e as presas provisórias do Pavilhão da Penitenciária Feminina da Capital.

Biojoia confeccionada em 2016. Imagem: Reprodução.

A atuação na penitenciária

A estrutura do projeto (Re)começos é assim: a equipe escolhe o produto que será confeccionado. Procura uma parceria comercial, para o repasse da técnica de confecção. Busca o material necessário para a confecção, que muitas vezes é obtido através de doação. Acerta detalhes operacionais com a Penitenciária Feminina da Capital, a parceira atual do projeto. A penitenciária seleciona as detentas que participarão com base no interesse, e o projeto tem início.

A equipe se junta em duplas e cada uma orienta um grupo de mulheres. Os produtos são confeccionados em um espaço separado pela própria penitenciária, em encontros semanais que duram cerca de duas horas.

Na primeira edição, um parceiro do grupo repassava a técnica para elas. Na segunda, a equipe ficou encarregada do ensino. Para a próxima edição, a ideia é ao mesmo tempo ter uma parceria e a equipe da Enactus se capacitar.

O produto também pode variar a cada edição. Na primeira, foram feitas biojoias de algodão. Na segunda e mais atual, foram confeccionadas bolsas ecológicas, como carteiras e porta-moedas, feitas de papelão, papel cartão e retalhos de tecidos. Para a próxima, há planos de confecção de colares de corda.

Ao longo dos dois primeiros anos, a equipe da Enactus já coletou histórias que carregarão consigo para a vida. “No primeiro dia de projeto”, Flávia conta, “nosso time chegou na penitenciária e uma das primeiras coisas perguntadas pelas mulheres foi se tínhamos medo delas. Na verdade, nós estávamos preocupadas se elas estariam interessadas no projeto e se gostariam. Mas elas próprias achavam que nós as veríamos como monstros. A visão lá de dentro era essa”.

Flávia Lara também conta sobre uma divisão, certa vez, entre os copos da equipe e das mulheres encarceradas. Quando uma mulher perguntou se podia pegar um copo na mesa, reparou: o copo dado às presas tinha um quarto do tamanho do copo da equipe. “O fato daquela diferenciação existir é muito simbólico”, diz Flávia. “É uma evidência.”

Naiara Sandes também recorda um caso. “Uma das meninas era muito nova, muito bonita, falava muito bem. Ela trabalhava na Riachuelo antes de ter sido encarcerada”. Em um dos dias, o assunto era marketing e vendas. Ao longo do projeto, foi sendo percebido que a mulher sabia muito mais sobre o assunto do que a equipe. “Era um impacto muito grande lembrar que aquela mulher estava presa. E simplesmente por uma situação da vida”, diz.

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