Exame Nacional do Ensino Médio falha ao avaliar competência de alunos

Estudantes fazem exames de vestibular. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

A pesquisa de mestrado de Samuel Paiva, defendida recentemente no Instituto de Física (IF) da USP, surgiu a partir de um questionamento pessoal. Ele trabalhava em uma empresa que fazia questões de física para simulados do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) com o intuito de formular perguntas que avaliassem as competências cobradas no exame. Paralelo a isso, também montava aulas de reforço para os alunos que tivessem problemas com aquelas competências.

O Exame Nacional tem como proposta, hoje, avaliar cinco competências principais: “dominar linguagens”, “compreender fenômenos”, “enfrentar situações-problema”, “construir argumentação” e “elaborar propostas”. No entanto, o que incomodava Samuel era o fato dele não ver conexão entre as aulas que montava e o que deveria ser avaliado. “O problema é que o ENEM se propõe a avaliar competências, mas como ele vai fazer isso se provavelmente não as estamos ensinando nas escolas?”

Assim, surge a pergunta fundamental de sua pesquisa: é possível ensinar competências? Se sim, como? “O que entendo, é que a gente está ensinando conteúdo e cobrando competência”.

Para avaliar a visão e percepção dos professores a respeito da importância das competências, ele elaborou um questionário que foi respondido por 65 professores de ciências, a maioria deles da rede pública de ensino. “A minha ideia era tentar entender qual a visão dos professores em relação ao ensino de competências, como trabalhavam isso e se tinham possibilidade de trabalhar. Tinha a impressão que os professores, no geral, não sabem o que é competência, nem o que a escola e o governo esperam deles”.

As respostas dos questionários foram agrupadas considerando “palavras-chave” ditas na resposta, como “autonomia”, “contexto” e “avaliação”. De acordo com estes grupos, surgiram quatro “categorias de professores”: tradicional, tradicional renovado, de competência institucional e de competência.

O tradicional é o professor que apenas deposita conhecimento no aluno e espera que ele reproduza. O tradicional renovado tenta trabalhar as capacidades do aluno fornecendo outros recursos que não só a sua própria aula, mas dificilmente aceita algo que o aluno traz. O professor de competência institucional aceita informações novas do aluno, trabalha em cima delas, mas fisicamente ainda está muito preso dentro da escola. Por fim, o professor de competência trabalha um projeto na comunidade, propondo soluções reais.

“Muitos professores entendem que trabalhar competências é importante para o ensino, mas eles ainda se baseiam muito no ENEM. No entanto, em minha visão, o exame não aborda as competências. da maneira como os teóricos fariam. Em alguns casos, apresenta questões que são muito conteudistas e exigem apenas aplicação de fórmula”, afirma Samuel.

A principal dificuldade dos professores hoje é que as competências dos alunos não podem ser trabalhadas apenas dentro da sala de aula. Para que o desenvolvimento seja efetivo, o ideal é que elas envolvam problemas e soluções reais. Além disso, as competências devem ser desenvolvidas com os alunos ao longo do ano, dificulta elaborar um planejamento prévio. Do mesmo modo, para o pesquisador, o Exame Nacional do Ensino Médio, como está planejado hoje, não consegue avaliar competências.

Por exemplo, suponha que o ato de dirigir seja uma competência. Quando você está atrás do volante de um carro deve se atentar aos carros ao redor, medir distância, velocidade, coordenação motora, entre outros fatores. Todas essas habilidades específicas são coordenadas para resolver um problema e buscar uma solução. E isso acontece em uma situação que, apesar de parecida, não é sempre igual.

No ENEM, isso não acontece. Todos os estudantes são submetidos à mesma situação: sentar-se durante quatro horas para fazer uma prova e só resolver questões de alternativa. Não há uma gama de problemas para que o aluno possa mostrar se é competente ou não.

Para Samuel, no quesito “medir competências”, o ENEM não evoluiu. “Para que haja evolução, todo o exame deve ser reformulado, é isso que a gente espera após a publicação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que ainda está em processo de debate”.

A prova de dois dias passou por uma série de mudanças ao longo dos anos. Se antes servia apenas para medir a qualidade do ensino no Brasil, hoje já serve como porta de entrada para universidades (tanto do Brasil como de Portugal) e fornece certificação de ensino médio, por exemplo. “Uma coisa é certa, o ENEM subiu de nível conceitualmente, mas não está medindo mais competências”, concluiu Samuel.

A aplicação prática é outro grande empecilho da prova. Não é possível avaliar competências de maneira justa para todos os estudantes sem levar em consideração o contexto e vivência de cada um. “Competência tem a ver com resolução de um problema real, como a gente faz isso em um país com as nossas dimensões? Não faz sentido uma lógica de competências se o aluno do Maranhão, do Amazonas e do Rio Grande do Sul fazem a mesma prova”. Mas afinal, seria possível avaliar competências em uma prova? Para Samuel, não. O exame ficaria muito caro e muito mais complexo.

No geral, a liberdade que os professores possuem para trabalhar competências dentro da sala de aula costuma ser mais restrita em escolas particulares, uma vez que a direção quer ter mais controle sobre o que está sendo ensinado e há mais cobrança por parte dos pais. “Infelizmente, o aluno ainda tem a visão de que quando você está tentando ensinar competências você não está dando aula”. Em compensação, na rede de ensino público, há mais liberdade, mas o tempo e o salário costumam ser menores, podem fazer com que os professores trabalhem em várias escolas ao mesmo tempo.

Quando existe interesse da escola e do professor, no entanto, o ensino de competências pode ser feito. Há alguns anos, Samuel desenvolveu com seus alunos um projeto sobre o problema de água em São Paulo. Os estudantes tinham que ligar para a Sabesp, tentar entender o porquê dos vazamentos, fazer denúncias e publicar. Era um problema real e eles tomaram medidas reais. “Nem todo o aprendizado deles foi curricular, seria muito difícil uma prova de física para eles fazerem. Mas a noção que desenvolveram sobre cidadania e sociedade foi muito grande, o problema é que não tenho um documento para comprovar”.

Justamente por essa falta de “prova”, a sala de aula ainda tem muita resistência em aplicar o desenvolvimento de competências e essa ideia fica restrita ao mundo do trabalho. “O pai do aluno não confia muito no professor. Afinal, ele não está na sala de aula, quer ter o controle de casa, quer saber o que está acontecendo e precisa poder conferir os resultados”.

Por isso, é normal que os estudantes se preparem para o vestibular em escolas conteudistas, entrem na faculdade através de uma prova tradicional e, apenas quando chegam no mercado de trabalho, vão ter que se adaptar ao desenvolvimento de competências.

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