Aborto como questão de saúde pública foi estratégia de sucesso do feminismo

Protesto contra a PEC 181, em novembro de 2017. Foto: Futura Press/Folha Press

Alianças partidárias não deram certo. Entrar no Estado, também não. Manifestações coletivas nunca decolaram. A descriminalização do aborto só se tornou palpável quando as feministas optaram por transferir a discussão para a área da saúde. É essa a principal descoberta de Thais Medina Coeli Rochel de Camargo, do Departamento de Ciência Política da USP, em sua tese de doutorado Narrativas de políticas sobre aborto no Brasil: uma análise a partir do narrative policy framework.

O interesse no tema é velho: começou em 2006, quando entrou no curso de Ciências Sociais. Na época, a atual deputada federal Jandira Feghali (PCdoB) concorria ao Senado. Uma semana antes das eleições, pesquisas indicavam uma vantagem de 17 pontos à frente de seu adversário. Para a surpresa não apenas dos institutos de pesquisa, como dos próprios juízes do Tribunal Regional Eleitoral (TRE), ela perdeu. O que veio à tona depois foi uma grande campanha contra sua candidatura, organizada especialmente pela Igreja Católica, associando a imagem da deputada à defesa do aborto. Pouco tempo depois, a socióloga Heleieth Saffioti, que havia escrito um editorial se opondo a essa campanha, foi demitida da PUC-SP. “Parei e me dei conta de que esse debate merecia ser estudado no Brasil”, relata.

Retraído após a conquista do voto, o feminismo ressurgiu no Brasil lado a lado com a luta pelo retorno da democracia, em meados de 1970. Em 1979, o Rio de Janeiro foi palco da primeira manifestação pró-aborto. Thais define que entre esse período e a promulgação da Constituição de 1988 se desenha o primeiro ciclo da mobilização pelo aborto no país. “Nessa época, todas as demandas que pude identificar se referiam à legalização total do aborto. Só a partir do fim da década de 1980 que há um enfoque maior em casos específicos”, explica. “Você cria uma narrativa específica para casos de violência sexual, você cria uma narrativa específica para a anencefalia. Em ambos os casos, houve algum sucesso”.

Conforme pontua na pesquisa, tentar legalizar o aborto por via judicial requer uma “narrativa de inconstitucionalidade”, o que violaria direitos já existentes. A própria Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que permitiu o aborto em casos de anencefalia é um exemplo disso. Ao afirmar que fetos anencéfalos não têm vida — e assim não gozam de direitos — e que a proibição nesse caso negaria o direito da mulher a não ser torturada, foram utilizados argumentos constitucionais.

A implementação de serviços de aborto no Sistema único de Saúde (SUS) sem alterações legais, portanto, implica uma justificativa para a inclusão desse serviço na rede pública de saúde. Ou seja, foi preciso colocar o aborto como um problema de saúde pública e propor leis neste domínio. A autora coloca essa como a via mais adequada à narrativa da autonomia feminina, pois “permite a criação de um novo direito, ainda que embasado em preceitos estabelecidos na Constituição”.

O surgimento do conceito de direitos reprodutivos na década de 1980 foi também responsável por consolidar o tema do aborto dentro da área da saúde, tal como fortalece o discurso em torno da contracepção. Sobretudo a partir dos anos 1990, com a Conferência de Populações e Desenvolvimento no Kairo e a Conferência Internacional da Mulher em Beijing. É dito com todas as letras: as pessoas têm o direito de decidir se querem ou não ter filhos, quando, quantos e como.

Embora os direitos reprodutivos pertençam a uma esfera de autonomia e liberdade, eles só se fazem valer se as pessoas têm acesso a serviços de saúde. Assim como os direitos reprodutivos e os direitos sexuais, a autonomia e a saúde, por mais que sejam conjuntos de coisas diferentes, são áreas indissociáveis. “Você poder exercer um controle sobre a sua reprodução significa também exercer a sua sexualidade livremente. Existem distinções conceituais, mas na prática, você tem que lidar com esses conjuntos de direitos ao mesmo tempo, e acaba tendo que colocá-los dentro da saúde, porque você precisa desses serviços”.

Para Thais, o grande objetivo das feministas brasileiras foi não só que o aborto fosse legal, mas que fosse possível. “Toda mulher brasileira precisaria ter a possibilidade de realizar o procedimento. Em um país como o Brasil, com uma desigualdade tão grande, com uma população pobre tão numerosa, a única forma de fazer isso é se você tiver um serviço público de saúde”.

A autora não classifica a alternativa escolhida pelas feministas brasileiras como algo positivo ou negativo, apenas como um caminho estratégico, parte de qualquer mobilização política. No entanto, levanta a questão da restrição causada pela escolha de uma única narrativa ao longo dos anos. “Quanto mais você investe nisso, porque isso é o que te deu bons resultados, mais você se fecha, e mais difícil é você sair disso e buscar outras formas de mobilização. Mesmo quando há ganhos, existe um lado negativo, o que te impede de seguir outras possibilidades no futuro”.

Em um cenário mais conservador, o aborto continua sendo pauta no mundo inteiro. Seja de maneira favorável, com a legalização na Irlanda por meio de um referendo — fato inédito —, ou contrária, com a indicação de Brett Kavanaugh à Suprema Corte dos Estados Unidos, forte opositor ao aborto. No Brasil, a onda gerada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro criou o Congresso mais conservador das últimas três décadas.

Segundo Thais, a ascensão do conservadorismo fortalece a temática, mas pelo lado da oposição. “Cada vez mais essas pautas, digamos, culturais e morais estão sendo colocadas no centro do debate, e sempre de uma forma reacionária. Então você tem o Escola Sem Partido, o Estatuto da Família, a oposição forte ao aborto”, percebe. “Nunca houve espaço no Congresso, então isso não vai se perder porque nunca se teve. Mas é possível que se perca espaço no debate político mais amplo. Certamente, a possibilidade de avanço no campo reprodutivo nos próximos anos me parece muito remota”.

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