Células in vitro de pacientes com depressão são produzidas pela primeira vez

Técnica é opção ao uso de modelos animais e às limitações de acesso ao encéfalo humano

Em todo o mundo, estima-se que mais de 300 milhões de pessoas, de todas as idades, sofram com o transtorno. Imagem: radioshow1017.com

A ida ao médico, o diagnóstico da doença e as seguidas tentativas de encontrar um medicamento que funcione bem: esse é o trajeto frequente da pessoa acometida pelo Transtorno Depressivo Maior, também conhecido como depressão, de acordo com Yasmin Rana de Miranda, mestre em Ciências (Biologia Genética) pelo Instituto de Biociências (IB-USP) e doutoranda em Neurociência e Cognição na Universidade Federal do ABC (UFABC).

O mestrado de Yasmin corresponde à primeira tentativa no meio científico de produzir modelos in vitro a partir de células-tronco pluripotentes induzidas humanas de pacientes diagnosticados com a depressão. Essas células, também conhecidas como hiPSCs, são produzidas por meio de um processo denominado reprogramação, que consiste em fazer com que células retiradas de um indivíduo adulto adquiram novamente a capacidade de se transformar e especializar em qualquer tecido de um organismo.

A dissertação, Estabelecimento de neurônios serotoninérgicos e organoides cerebrais como modelos in vitro para o estudo do Transtorno Depressivo Maior, pode auxiliar no desenvolvimento futuro de tratamentos mais baratos, adequados e eficientes para a doença. “Nesse percurso da busca pelo remédio ideal, o paciente acaba se deparando com uma série de efeitos colaterais, além dos gastos financeiros”, considera a pesquisadora.

Yasmin trabalhou com células-tronco em intercâmbio na Austrália, realizado durante a graduação no IB. Em seu mestrado, orientado pela professora Lygia da Veiga Pereira Carramaschi, do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (IB-USP), utilizou como modelos de pesquisa as hiPSCs produzidas a partir de células sanguíneas de cinco indivíduos com depressão – o material celular fazia parte do estudo de um outro mestrando do laboratório. A partir dessas células, a pesquisadora produziu e caracterizou dois tipos de modelos in vitro, os neurônios serotoninérgicos e os organoides cerebrais.

Os neurônios serotoninérgicos produzem a serotonina, neurotransmissor responsável pela regulação da ira, temperatura corporal, humor, sono e apetite, por exemplo. “Acredita-se que as pessoas que têm depressão apresentam problemas na via de produção, recepção ou recaptação da serotonina, já que esse neurotransmissor está ligado ao que chamamos de efeitos antidepressivos”.

A transformação das células-tronco dos cinco pacientes com depressão em neurônios serotoninérgicos ocorreu a partir da aplicação de fatores de crescimento, substâncias que, segundo Yasmin, promovem o amadurecimento – ou diferenciação – das células, cultivadas no fundo de placas planas.

Diferenciação das células de uma das linhagens de hiPSCs em neurônios serotoninérgicos nos dias 0 e 39, da esquerda para a direita. Imagem: Yasmin Rana de Miranda

Já os organoides cerebrais, produzidos pela primeira vez em 2014, consistem em modelos 3D do encéfalo humano. “Cultivamos as células-tronco em suspensão, que foram formando agregados celulares e se diferenciando em tipos celulares presentes no nosso encéfalo”, conta. A pesquisadora esclarece que, embora essas estruturas sejam comumente chamadas de “mini-cérebros”, elas são bem menos complexas do que o órgão humano. “Os organoides cerebrais que produzimos recapitulam características do primeiro trimestre de desenvolvimento do nosso encéfalo, e são modelos interessantes para o estudo de doenças que apresentam casos associados a fatores genéticos, como a depressão”.

Diferenciação de uma das linhagens celulares de hiPSCs em organoides cerebrais nos dias 6(A), 11(B), 15(C) e 37(D). Imagem: Yasmin Rana de Miranda

Depois da tentativa de diferenciar as células-tronco em neurônios serotoninérgicos e organoides cerebrais, Yasmin realizou uma sequência de testes que visavam confirmar se as células modificadas eram realmente neurônios serotoninérgicos e organoides cerebrais, ou apenas apresentavam a aparência dessas estruturas. “Precisávamos checar se o processo de diferenciação tinha dado certo ou não, porque você pode ter estruturas com formato de neurônio, mas que não funcionam enquanto tal, por exemplo”, esclarece.

Vídeo mostra abertura dos canais de cálcio dos neurônios serotoninérgicos, destacada pelos sinais de fluorescência. Créditos: Yasmin Rana de Miranda

As cinco linhagens de hiPSCs estudadas foram diferenciadas em neurônios serotoninérgicos com sucesso, apresentando resultados positivos nos três procedimentos. No caso dos organoides cerebrais, apenas uma linhagem sobreviveu ao processo de diferenciação. Para a pesquisadora, esse último resultado se deve ao fato da necessidade de aperfeiçoamento da técnica de produção dessas estruturas, que é recente. Além disso, comparado à produção de neurônios serotoninérgicos, o processo é mais complexo e envolve maior número de etapas. “Enquanto os neurônios ficam nas placas de cultivo e, basicamente, só é necessário modificar o meio de cultura, os organoides começam nas placas, depois passam para o cultivo em suspensão, demandam um revestimento de uma mistura proteica gelatinosa que mantém a coesão das células e, no final, temos que agitar os agregados celulares, porque eles crescem e a difusão de oxigênio e nutrientes é prejudicada”, explica.

Possíveis aplicações

Yasmin acredita que a produção desses dois tipos de modelos in vitro, feitos a partir de hiPSCs de pacientes com depressão, pode ser uma alternativa para o estudo da doença além dos modelos animais que, segundo a pesquisadora, carregam uma série de questões éticas e não são tão fiéis ao organismo humano, apesar de suas inúmeras contribuições à ciência. “O encéfalo de um rato, que é um tipo de modelo in vivo que usamos, por exemplo, é bem diferente do encéfalo humano”.

Os neurônios serotoninérgicos e os organoides cerebrais produzidos também podem ser empregados na futura identificação dos chamados biomarcadores diagnósticos da doença, fatores que podem ser medidos experimentalmente e indicam riscos de ocorrência de patologias num indivíduo. Segundo a pesquisadora, já é possível identificar biomarcadores da doença de Alzheimer a partir da amostra de sangue de uma pessoa, por exemplo, mas ainda não foi identificado nenhum biomarcador da depressão.

Os resultados podem, ainda, viabilizar a triagem de fármacos de maneira personalizada, o que, para Yasmin, levaria ao futuro barateamento e aumento da eficiência dos tratamentos da doença. Isso aconteceria por meio da realização de testes simultâneos de medicamentos nas células desses cinco – e, também, de outros – pacientes estudados, visando identificar possibilidades e efeitos de diferentes recursos terapêuticos. “Dá para obtermos informações sobre o funcionamento da doença, o que não conseguimos fazer diretamente por meio do sistema nervoso de um indivíduo vivo. Achamos, por exemplo, que o problema da depressão está relacionado principalmente à via da serotonina, e, analisando as células, poderemos verificar mais diretamente esse cenário”.

 

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