‘Hormônio do amor’ tem efeitos controversos no consumo de álcool

Grupo de pesquisa foi surpreendido ao testar estratégias em animais

Tratamento de dependência ao álcool conta com desintoxicação e estímulos de recompensa alternativa. Imagem: Banco da Saúde

Anteriormente já apontado como um promissor fármaco combativo à dependência do álcool, o hormônio ocitocina tem sido relacionado com efeitos inversos ao que se pretende quanto à redução do consumo de etanol. Também conhecido como “hormônio do amor” − por ter seus níveis aumentados quando da interação física entre parceiros −, a liberação da ocitocina tem sido analisada em um contexto específico chamado de enriquecimento ambiental. A condição é atualmente estudada pelo grupo de pesquisa da professora Rosana Camarini, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP.

O carro-chefe do Laboratório de Neuroquímica e Farmacologia Comportamental do ICB é o estudo da dependência do álcool. Nas pesquisas mais recentes, o grupo alia esse foco ao enriquecimento ambiental, por meio do qual se busca imitar, em laboratório, as condições semelhantes às de um habitat natural de animais. Em resumo, os pesquisadores trabalham com camundongos que costumam ficar numa caixa-padrão relativamente pequena. No enriquecimento, tem-se uma caixa cerca de três vezes maior, contida de diversos objetos que propõem interações e estímulos a eles, como brinquedos, tubos e rodas de exercício.

“São condições que tentam imitar o que acontece na natureza”, conta a professora, que explica também a troca de brinquedos duas vezes por semana. “Na natureza, existem novidades que aparecem para os indivíduos. Então isso também é importante no enriquecimento, que é desafiá-los sempre a alguma coisa.” 

Então, os animais foram colocados em contato com duas garrafas: uma com água e outra com 20% de álcool. E este é o chamado período de aquisição de dependência, em que o animal conhece o efeito do etanol. É importante pontuar que sempre está também em observação um grupo-controle, ou seja, que habita a caixa-padrão não-enriquecida, para fins de comparação.

O que se esperava dessa situação era que o grupo enriquecido consumiria menos álcool do que água em relação ao controle, uma vez que já se observou em trabalhos anteriores que, com drogas como cocaína, o efeito do enriquecimento ambiental é imediato na redução do consumo da droga. Mas não foi o que aconteceu. “Medindo constantemente, a gente não via nenhuma diferença. O enriquecido bebia a mesma quantidade de álcool que de água.”

O laboratório resolveu, então, propor uma situação que estimulasse o consumo para efeitos comparativos entre os dois grupos. Os animais foram colocados, individualmente, em um tubo de contenção, sendo submetidos a uma situação de estresse de mobilização, o que aumentaria o desejo pela droga, por ser ansiolítica. E, de fato, após o estresse, os animais bebiam mais álcool do que água. Os enriquecidos, no entanto, não tinham uma diferença expressiva de aumento no consumo, enquanto os animais do grupo-controle bebiam muito mais etanol, confirmando o que se esperava.

A explicação para isso, levantada a princípio, era a de que os animais expostos ao ambiente enriquecido tinham um aumento nos níveis de ocitocina, o que poderia relacionar o hormônio à redução do consumo de etanol. E alguns estudos preliminares na Alemanha haviam sugerido que humanos dependentes de álcool, ao ingerirem ocitocina por inalação, tinham sua vontade pelo etanol reduzida. No entanto, essa hipótese ainda não havia sido comprovada. E foi um pouco desacreditada quando o laboratório observou outro resultado.

Beber social

Em um modelo experimental alternativo, conhecido como modelo condicionado por lugar, o animal é exposto poucas vezes ao álcool, sem necessariamente se assemelhar à condição de dependente. A metodologia se resume a associar os efeitos da droga e de um líquido salino a dois compartimentos marcados de formas diferentes. Por exemplo, o espaço X tem listras horizontais na parede, enquanto o Y, listras verticais. Então, quando o animal recebe álcool, ele é direcionado ao ambiente X, e quando recebe a solução salina, ao ambiente Y. Dessa forma, esperava-se que os animais se direcionassem ao ambiente X, que é o associado à droga. E, além disso, a expectativa era de que o animal enriquecido passaria menos tempo no espaço X por estar sob os “efeitos” do enriquecimento. Mas também não foi o que ocorreu: o enriquecido ficou mais tempo no ambiente relacionado ao álcool.

Neste segundo modelo, o animal não apresenta uma relação de dependência com a droga, mas a associa a um estímulo prazeroso, quase como um “beber social”. E a incerteza quanto aos efeitos do hormônio vem na explicação do resultado: “O enriquecimento aumenta a sociabilidade dos animais, e, por ser um estímulo prazeroso, também aumenta os níveis de ocitocina”. Então o beber social pode ser determinado pelo aumento dos níveis do hormônio, o que gera uma situação em que o enriquecimento acaba favorecendo o próprio consumo.

“É um alerta”

A transferência do modelo de enriquecimento ambiental para humanos está mais relacionada aos outros estímulos que podem ser dados aos dependentes. Assim, impede-se que se estressem com mais frequência e, consequentemente, fiquem suscetíveis a recaídas, funcionando como estratégia de desvio para outra recompensa que não seja a droga. Para a professora, esse enriquecimento para humanos se resume a atividades hedônicas, esportivas, produção de trabalhos manuais, pintura e música. “Oferecer à pessoa estímulos individuais que possam ser recompensadores não-farmacológicos”, comenta.

Em relação ao surpreendente resultado que pode relacionar a ocitocina ao aumento do consumo de álcool, a professora Rosana levanta um ponto importante. Apesar de já haver algumas indicações de benefícios do uso do hormônio, no sentido de diminuir o consumo para indivíduos dependentes, é preciso ficar alerta quanto ao consumo social. “Já havia bastantes trabalhos publicados mostrando que a ocitocina pode ser liberada para tratamento de álcool, mas, agora, percebemos que é preciso ter cautela. Porque ao mesmo tempo em que a ocitocina diminui o consumo de álcool, ela também pode favorecer o consumo em um ambiente social, e ser um fator que abre novas portas”, conclui.

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