Conflitos de interesse marcaram São Paulo durante abertura dos portos em 1808

Litoral do Rio de Janeiro em gravura do século 19. (Imagem: Reprodução/Biblioteca Nacional Digital)

Assinado em janeiro de 1808 por Dom João de Bragança, o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas foi marcante para o Brasil. Por permitir que o país, ainda colônia portuguesa, estabelecesse relações comerciais diretamente com outras nações europeias, o documento é hoje lembrado como um dos fatores que preparou o cenário para que poucos anos mais tarde se consolidasse a Independência, junto com a chegada da família real. Durante muito tempo, a visão que prevalecia sobre este evento é de que ele tenha causado impacto semelhante em todo o Brasil, que a partir de então passava a ter mais autonomia econômica. Porém, estudos recentes têm revisitado a história nacional para compreender melhor as particularidades de como cada região esteve nos diversos momentos importantes ao longo de nossa trajetória.

É neste contexto que se insere o livro “Política e negócios em São Paulo: da abertura dos portos à independência”, de Renato de Mattos, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Com previsão de lançamento para o início de 2019, o livro foi escrito a partir da tese de doutorado defendida por Renato na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), e explora a fundo parte das disputas políticas e econômicas que movimentaram as elites paulistas desde 1808 até 1822. O professor conclui que o impacto da abertura dos portos foi quase insignificante em São Paulo. A medida acabou sendo apenas mais um elemento dentro dos conflitos de interesses que movimentavam a região, que começaram bem antes e continuaram pelos anos seguintes.

Disputas políticas

A pesquisa que deu origem à questão central do livro começou em 2010, e durou cerca de quatro anos. Entretanto, a relação de Renato com o tema é muito anterior. “O meu doutorado é desdobramento de uma pesquisa que eu comecei lá na época da graduação, que foi sendo amadurecida ao longo do tempo”, explica. “Boa parte das discussões, dos problemas com os quais eu estava lidando, haviam sido formulados em 2004, quando me tornei bolsista de iniciação científica”.

Durante esse período, Renato estudou os governadores que estiveram à frente da capitania de São Paulo durante o período de 1788 a 1808 ‒ Bernardo José de Lorena, António Manuel de Melo Castro e Mendonça e António José da Franca e Horta. Todos os três tinham a opinião de que São Paulo era um lugar marcado pela pobreza, com pouco comércio e que os comerciantes que aqui estavam tinham dificuldades para vender sua produção. Entretanto, cada um propunha medidas diferentes para lidar com a situação. Ao analisar essas medidas e o efeito causado por elas, o pesquisador percebeu que esse discurso em relação à pobreza estava mais relacionado à promoção de um determinado projeto político do que à verdadeira realidade econômica da região, e foi esse o tema aprofundado em sua dissertação de mestrado.

A Calçada do Lorena foi o primeiro caminho pavimentado a ligar Santos e São Paulo, construída durante o governo de Bernardo de Lorena (Imagem: Divulgação/Parque Estadual Serra do Mar)

Uma das políticas instituídas por Bernardo de Lorena assim que assumiu a capitania de São Paulo foi a “lei do porto único”. A regra determinava que o Porto de Santos deveria centralizar todo o comércio marítimo de São Paulo, fosse para importações ou exportações. Na época, os comerciantes paulistas vendiam sua mercadoria ao Rio de Janeiro, e lá ela era revendida para Portugal. Lorena argumentava que o que impedia o desenvolvimento econômico de São Paulo era a incapacidade de negociar suas vendas diretamente com Lisboa, e por isso criou a restrição.

Entretanto, António Manuel de Melo Castro e Mendonça, que assumiu em 1797, tinha outra opinião. Ele considerava que muitos dos moradores do litoral norte de São Paulo tinham facilidade maior para negociar com os cariocas do que com o Porto de Santos, e por isso flexibilizou a regra, permitindo o comércio costeiro. Já o governador seguinte, António José da Franca e Horta, restringiu o comércio novamente, utilizando mais uma vez o argumento de que fazia o melhor para resolver a situação de pobreza da região.

Como conta o professor Renato, os historiadores em geral dizem que a “lei do porto único” em São Paulo deixou de existir em 1808, quando houve a abertura dos portos às nações amigas, mas o que ele destacou na pesquisa de mestrado foi que essa política foi banida meses antes, portanto nada tinha a ver com o decreto de Dom João. Na verdade, foi resultado de uma pressão exercida por grupos que discordavam da concentração do comércio em Santos. “Disso surge a pergunta que começa a introdução do meu doutorado: considerando que essa regra, que a historiografia chamou de ‘lei do porto único’, foi suprimida antes da família real, então qual o significado da abertura dos portos em São Paulo?”

São Paulo e a abertura dos portos

Dom João VI (Imagem: Reprodução/Biblioteca Nacional Digital)

Quando se fala da abertura dos portos em 1808, alguns detalhes importantes costumam ser deixados de lado. Conforme explica Renato, há um pequeno trecho no decreto em que o príncipe regente Dom João determina o caráter provisório do documento, sendo que o decreto definitivo seria assinado somente em junho daquele ano. Nele, seriam regulamentadas as regras e taxas segundo as quais operaria o comércio costeiro, que acabam por favorecer e estimular o comércio apenas nos portos do Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Luís do Maranhão e Belém.

“Com essa regulamentação, era mais vantajoso para o estrangeiro vir para esses cinco portos do que para os outros, porque a taxa de imposto era mais barata”. Pelas novas diretrizes, somente os portugueses podiam redistribuir a mercadoria que chegava nesses locais para o restante do Brasil. Isso significa que mesmo após 1808 a presença estrangeira nos portos paulistas era muito pequena, situação que se manteve até 1822.

Desta forma, o embate existente em São Paulo sobre com quem deveria ser negociado o comércio produzido na região ‒ o Rio de Janeiro ou Portugal ‒ também continuou. Uma das pessoas que defendia o comércio entre RJ e SP pelo Porto de Santos era José Bonifácio de Andrada e Silva, o conhecido Patriarca da Independência. A família de Andrada era uma das mais ricas de Santos, e estavam entre os comerciantes que atuavam diretamente neste comércio. Do outro lado, havia representantes da Companhia do Alto Douro, empresa portuguesa que teve papel importante no comércio do período joanino.

Os conflitos em relação ao Porto de Santos influenciaram até o modo como a elite paulista se posicionou durante o período da Independência. Às vésperas do movimento que separou definitivamente o Brasil de Portugal, ocorreu em São Paulo a chamada Bernarda de Francisco Inácio, uma disputa política entre os grupos favoráveis e contrários à autoridade de Dom Pedro. “De um lado, grupos ligados à Companhia do Alto Douro tinham medo da Independência porque, caso houvesse rompimento com Portugal, perderiam o espaço do comércio em SP. Do outro lado, estava um grupo que defendia o projeto de Independência de Dom Pedro porque, dentre outros motivos, queriam se ver livres da intervenção de negociantes que estavam do outro lado do Atlântico”. Como mostra o doutorado do professor Renato, durante esse turbulento período entre o fim do século 18 e início do 19, a política e os negócios em São Paulo sempre foram pautados por interesses pessoais de determinados grupos.

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