Tela de Benedito Calixto guarda relação com história de São Paulo e do Museu Paulista

Origem e apropriação da obra Fundação de São Vicente foram estudadas em pesquisa de mestrado

Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto (Imagem: Reprodução / Museu Paulista da USP)

Em 1900, comemoravam-se quatrocentos anos do descobrimento do Brasil, e no mesmo ano era inaugurada uma das obras mais importantes do acervo do Museu Paulista da USP (MP): Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto. Com todos os seus 1,92 por 3,85 metros de tamanho, a pintura retrata a chegada dos portugueses com a expedição de Martim Afonso de Souza em 1532, que resultou na fundação da primeira vila brasileira.

Apesar de hoje ter importância reconhecida, o conhecimento a respeito de como a tela nasceu e como tornou-se tão emblemática nunca foi devidamente compreendido. Por isso, ela foi objeto de estudo para o mestrado de Eduardo Polidori, graduado em História e mestre em Museologia pela USP, resultando na dissertação Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto: composição, musealização e apropriação (1900 – 1932), defendida em 2018 pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia (PPGMus) da USP.

Durante dois anos, o pesquisador dedicou-se a investigar a origem da obra, resgatando documentos de diferentes tipos. Desta forma, descobriu informações inéditas sobre seu processo de encomenda e musealização, e pôde levantar hipóteses sobre como ela contribuiu na formação de determinadas narrativas a respeito da história de São Paulo.

Uma via de mão dupla

O método utilizado para desenvolver a pesquisa teve como base três eixos de análise da obra: produção, musealização e consumo ‒ ou seja, em que contexto ela surgiu, como chegou ao Museu e como foi apropriada imageticamente desde então. Para isso, foi estabelecido um recorte temporal a partir de 1900, quando a tela é inaugurada, até 1932, ano do quarto centenário da cidade de São Vicente.

Com a Fundação de São Vicente, Benedito Calixto desejava promover-se enquanto artista (Reprodução / Wikimedia Commons)

Eduardo trabalhou com documentação extensa, entre jornais, livros, catálogos e correspondências, por exemplo. Foi assim que ele chegou à primeira grande descoberta sobre a origem da obra. “Nem gosto mais de chamar de encomenda, porque a documentação deixa claro que não era intenção daquela sociedade encomendar uma pintura histórica para Calixto, e sim o contrário. Ele tinha interesse, enquanto artista, de se promover profissionalmente pela execução de uma pintura histórica em grande formato”.

Benedito Calixto tinha planos de pintar a Fundação de São Vicente desde pelo menos 1892, como revela uma carta trocada com o pintor santacatarinense Victor Meirelles. No documento, que foi o mais antigo estudado na pesquisa, Meirelles dá sugestões para Calixto sobre a composição da obra.

Pelo contexto, fica evidente que Calixto enxergava naquele momento uma chance de crescimento em sua carreira como artista. Na época, já era conhecido entre as elites de Santos e São Vicente, mas desejava ir além desse limite. “Ele conseguiu entender que o quarto centenário do Descobrimento do Brasil era uma oportunidade para que ele oferecesse a obra de arte como possibilidade de aquisição para essa sociedade comemoradora”. Então, o pintor se propôs a fazer todo o planejamento decorativo necessário para a exposição histórico-arqueológica que ocorreria durante as comemorações do quarto centenário em São Vicente, para que em troca a tela fosse adquirida e exposta ‒ o que de fato aconteceu.

A Sociedade Comemoradora do IV Centenário da Descoberta do Brasil era composta por membros da elite comercial e política da região, nomes como Gregório Inocêncio de Freitas, político tradicional em São Vicente, e José Cesário da Silva Bastos, senador pelo Partido Republicano Paulista. Outra hipótese levantada foi de que essas elites também buscavam uma forma de se promover. “Para mim, a organização da comemoração de centenário foi uma forma das elites locais atraírem o olhar e, sobretudo, os investimentos do governo do estado, na época chamado de Presidência do Estado”. Desta forma, a obra acabou servindo tanto aos interesses desta sociedade quanto do autor da obra.

Apropriação e significação

Eduardo também buscou compreender os significados que foram atribuídos à Fundação de São Vicente ao longo do tempo. No momento de sua inauguração, a tela foi colocada na mesma sala onde estavam expostas máquinas, invenções de engenharia e até massas de uma indústria alimentícia, algo curioso, mas que estava de acordo com a composição simbólica almejada.

“Acessando as fontes, fica claro que a pintura histórica representava o contraponto necessário ao progresso, uma ordem civilizacional, um ponto seguro no passado, como se fizesse um contraponto ao presente”. O local que a obra ocupou em sua primeira exposição indica a construção de uma narrativa que que seria retomada posteriormente. “Mostra como a pintura tem um papel crucial, dentro dessa lógica expositiva, que quer mostrar o progresso, mas ao mesmo tempo quer mostrar o lugar histórico que aquela comunidade, São Vicente e Santos, detém no passado paulista”.

Museu Paulista da USP (Foto: Francisco Emolo / Jornal da USP)

Poucos meses depois, a tela foi doada pela Sociedade Comemoradora ao Museu Paulista, onde adquiriu novos significados inclusive com a contribuição de seu autor, que acompanhou toda a sua instalação em São Paulo. Lá, ela foi colocada na sala B11, dedicada à geologia e à paleontologia. “Recuperei a legislação do MP e vi que ele surge para contar a história da ocupação natural e cultural do território pelo homem. Então, a primeira hipótese que mostro é essa homologia semântica, ou seja, a pintura discursa sobre a formação política do território a partir do litoral, ao passo que geologia e paleontologia dizem a mesma coisa, só que do ponto de vista do mundo natural”. A natureza, glorificada no Museu e retratada na pintura de forma exuberante, era um elemento que fazia parte de uma retórica ufanista comum no Brasil daquela época. Neste contexto, a pintura cumpria uma função de celebração do território.

Em 1917, a direção do Museu Paulista passa do alemão Hermann von Ihering para Afonso d’Escragnolle Taunay. E a famosa tela de Calixto mais uma vez muda de lugar, indo para a sala A10 do museu. Na nova configuração, fica junto de outros quadros históricos, e em seu entorno são colocados mapas que mostram a história da formação territorial brasileira. “Durante a gestão Taunay, a tela recebeu um significado menos celebrativo e mais processual, ou seja, não interessa mais aquele ponto, aquela data a ser celebrada, e sim o processo de constituição do território”. Como explica o pesquisador, Taunay ficaria famoso posteriormente como grande produtor da “epopeia bandeirante”, que construía a imagem do Estado de São Paulo como grande responsável pelo desbravamento do Brasil, e a montagem da sala A10 pode ser compreendida como um dos primeiros indícios desta ideia.

Com o passar das décadas, o quadro de Calixto foi largamente reproduzido em revistas, livros didáticos e cartões postais, e continua no acervo do Museu Paulista até hoje. “Um dos meus grandes desafios era entender porque a Fundação de São Vicente continua no MP, enquanto outras pinturas, algumas até vistas como plasticamente mais agradáveis, foram transferidas para a Pinacoteca”, diz Eduardo. A explicação dele é que o local mantém uma narrativa que busca privilegiar a história de São Paulo, de forma que obras que não possuem esse caráter tornam-se menos interessantes. “O que se mantém no MP são as figuras que evocam heróis ‒ como Dom Pedro, no caso da tela Independência ou Morte, ou Martim Afonso de Souza, no caso da Fundação de São Vicente ‒, personagens da história colonial paulista como os que Calixto foi capaz de enquadrar dentro de uma mesma cena”.

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