Pesquisador implanta ossos de baleia em mar profundo para estudar fauna associada

Ambiente apresenta forma de vida similar a locais de produção de matéria orgânica chamados de quimiossintetizantes

Ossos de baleia no fundo do oceano. Imagem: Maurício Shimabukuro.

Uma pesquisa realizada no Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (IO-USP) concluiu que carcaças no mar profundo podem ser ambientes intermediários para dispersão da fauna presente em outros ambientes quimiossintetizantes. Além disso, foi possível perceber que a comunidade de carcaças no mar profundo é relativamente frequente, fazendo com que muito provavelmente existam várias carcaças entre o Oceano Atlântico e o Pacífico que conectem ambas as bacias.

As descobertas foram possíveis através da tese de doutorado de Maurício Shimabukuro, resultado de um projeto temático financiado pela Fapesp e coordenado pelo professor Paulo Sumida, também do IO-USP. O projeto se propôs estudar as carcaças de baleias no fundo do oceano por cerca de seis anos. “Trabalhei com a fauna associada a essas carcaças de baleia”, conta Shimabukuro. Ele explica que esse tipo de ambiente foi escolhido para estudo por apresentar uma fauna típica, além de compartilhar espécies de outros ambientes quimiossintetizantes de mar profundo.

Produção de matéria orgânica

Normalmente a quantidade de alimento existente no mar profundo é extremamente pequena. Portanto, uma carcaça de baleia impulsiona significativamente a oferta de alimento rápido e em grande quantidade de uma única vez nesses locais, atraindo uma grande diversidade de fauna. Essa matéria orgânica é degradada não apenas por animais de grande porte, mas também por microorganismos. “Conforme a matéria vai sendo degradada, começa a ter acúmulo de compostos que são tóxicos, chamados de compostos reduzidos, como por exemplo o sulfeto” explica. “Esse sulfeto começa a ser usado numa produção que não é fotossintética, mas que é quimiossintética. Isso faz com que o ambiente se torne mais produtivo, com mais alimento”.

No mar profundo existem outros ambientes chamados de quimiossintetizantes: as fontes hidrotermais e as exsudações frias. Nesses ambientes grande parte da fauna é endêmica. Nas carcaças, parte da fauna é muito similar a esses outros ambientes quimiossintetizantes.

Existe uma hipótese na literatura científica de que as carcaças seriam ambientes intermediários para que algumas espécies dependentes da quimiossíntese pudessem se dispersar entre esses ambientes isolados, “porque uma carcaça pode ocorrer em qualquer lugar, desde que a baleia morra e afunde em um determinado local”, defende Shimabukuro. “E aí ela se torna um tipo de ponte ligando esses dois ambientes”.

Uma das motivações para o estudo foi a de entender se realmente há uma fauna dependente da quimiossíntese nas carcaças, e se ela é de fato semelhante a esses outros ambientes.

Implantando ossos no fundo do mar

“No Atlântico Sul, por exemplo, a única comunidade associada a uma carcaça de baleia que a gente conhece é uma que o Sumida, meu orientador, descobriu em uma parceria com um grupo de pesquisa japonês”, conta. Foi pensando nessa dificuldade de encontrar as carcaças que Shimabukuro e Sumida, seu orientador, resolveram implantar os próprios ossos de baleia no fundo do mar para criar suas amostras. Foram usadas vértebras torácicas de uma baleia jubarte, encontrada encalhada em uma praia do Espírito Santo.

Ele conta que escolheu ossos ‒ e não a carcaça inteira ‒ pois estava interessado numa determinada fase da comunidade associada. Mais especificamente a segunda e terceira. Isso porque uma carcaça, quando chega no fundo do oceano, passa por vários estágios ecológicos sucessivos. Primeiro, quando ainda há carne e gorduras, há a chamada megafauna (peixes, caranguejos e outros animais grandes). Conforme esses animais vão se alimentando, o tecido mole acaba e o local passa por uma substituição de fauna, chamada de macrofauna, onde vai ser consumida uma matéria orgânica mais degradada, como a gordura que fica dentro dos ossos. A última fase é onde ocorre a quimiossíntese. A fauna que Shimabukuro queria estudar estava presente nessas duas últimas fases, como o Osedax, anelídeo mais conhecido como verme-comedor-de-osso.

O estudo foi realizado em duas profundidades distintas: 1.500 e 3.300 metros. A escolha foi feita, pois cada profundidade é dominada por um tipo de massa d’água. Enquanto a primeira tem o predomínio da água profunda do Atlântico Norte, originada no Ártico, a segunda tem o predomínio de uma massa d’água formada na Antártica. “A ideia era estudar essas duas profundidades porque teria influência de massas d’águas diferentes, portanto fontes larvais distintas” conta o pesquisador. Os locais de implantação dos ossos foram três: próximos a Vitória, Cabo Frio e à Baía de Santos, totalizando seis amostras.

Outra questão relacionada às profundidades escolhidas é que o projeto temático que originou os estudos de carcaças tem parceria com dois pesquisadores norte-americanos. Eles também aplicaram o mesmo projeto nos Estados Unidos, para estudar o Pacífico Nordeste, avaliando as mesmas profundidades. Com isso, é possível comparar os resultados entre os oceanos Pacífico e Atlântico.

Para que os ossos pudessem ser recuperados, foi usada uma estrutura experimental em forma de prisma, chamada de Lander. Os ossos são fixados nessa estrutura, que contém também um liberador acústico e um lastro com peso calculado para fazer com que ela afunde até determinada profundidade. A estrutura também contém um conjunto de bóias fixas. Uma vez que o liberador acústico é acionado, ele libera o lastro e a boia o traz para a superfície. Os ossos ficaram submersos de 15 a 20 meses “porque a gente não conseguiu resgatar tudo de uma só vez”, conta Shimabukuro.

Amostras fixadas na estrutura “Lander”. Imagem: Maurício Shimabukuro.

Resgate de ossos

O trabalho de Shimabukuro era estudar tanto a diversidade genética, quanto a diversidade morfológica da fauna presente nas duas últimas fases das carcaças. Para isso ele utilizou uma parte específica do DNA, considerado o “código de barras” dos metazoários. As duas análises são necessárias porque nesses ambientes existe em larga escala as chamadas “espécies crípticas” (espécies que parecem idênticas, mas possuem composição genética diferente).

Como resultado, o pesquisador pode perceber que algumas espécies que antigamente só ocorriam no Pacífico foram encontradas nas suas amostras colhidas no Atlântico. “Pensando nisso, é impossível que uma população estabelecida aqui no Atlântico ou uma população estabelecida lá no Pacífico, numa única geração, alcance uma carcaça do outro lado. Então se são as mesmas espécies, e as populações estão conectadas, o que me leva a acreditar é que provavelmente ao longo desse trecho [Pacífico-Atlântico] existam várias carcaças que conectam as regiões para que as espécies possam se distribuir ao longo desse espaço geográfico grande”, explica.

Além dessa conclusão, a tese de Shimabukuro também descreveu algumas espécies. Uma delas tratava-se de um organismo de sequência idêntica a uma espécie encontrada em uma fonte termal na região do Mar do Caribe. “Neste trabalho, só com os organismos que eu analisei, a gente mostra que uma carcaça abriga parte da fauna que é compartilhada com esses outros ambientes quimiossintetizantes”.

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