‘Comida de branco’ alterou saúde bucal de índios gaúchos

Arrendamento de terras atrapalha dieta natural de tribos mais distantes, que veem nos industrializados ameaça de doenças

Dança da etnia Kaingang, foi feita como saudação aos visitantes por conta do assentamento na Colônia Santa Eulália, 5º distrito de Pelotas/RS.(Gustavo Mansur/Canon College)

Os indígenas tem sua história negligenciada na história brasileira. E quando o assunto são as tribos no Sul do Brasil, sua identidade é ainda mais encoberta. O pesquisador Gustavo Hermes Soares é da pequena Tenente Portela, cidade de 14 mil habitantes no interior gaúcho, e lar da maior terra indígena do estado. Seu pai, funcionário público, lidava diretamente com Kaingangs e Guaranis. E foi essa a inspiração inicial para sua tese de mestrado Saúde bucal dos povos Kaingang e Guarani da Terra Indígena Guarita: perspectivas nativas e epidemiológicas.

Gustavo considera que o maior ganho de seu estudo foi dar voz a uma população pouco valorizada no meio acadêmico. Por dois meses ele frequentou as 12 aldeias do território Guarita, que se espalham por 23 mil metros quadrados. Algumas ficam a 2 km da cidade, outras, a 40. A diferença entre as paisagens é visível, enquanto as mais próximas parecem um vilarejo, já parcialmente urbanizadas, as mais distantes têm até animais silvestres.

Os Kaingangs são a terceira maior população indígena no país, com 48.000 habitantes, 6.000 no Rio Grande do Sul. Os guarani são a segunda, mas com população mais modesta na região.

Território da Terra Indígena Guarita, alvo da pesquisa. (./Mapa Guarani Digital)

Para se aproximar dos índios, o pesquisador usou como artifício a influência do pai: “Ele me ajudou bastante no começo para me apresentar para as lideranças indígenas, e em toda casa que eu chegava me apresentava como filho do seu Valdir. As pessoas acabavam sendo um pouco mais receptivas.”

O pesquisador trabalhou com dois grupos. Um com os kaingang, na aldeia mais próxima a cidade, e outro com os guarani na mais distante, para observar os hábitos ocidentalizados absorvidos por ambos. No segundo, ele inclusive precisou de um tradutor-intérprete, já que a conversa foi na língua nativa.

Para Gustavo, sua pesquisa esmiuçou a saúde bucal para além do dentista. Assim como os índios entendem a saúde de uma maneira ampla, ele estudou a relação entre os dentes e alimentação, identidade, cultura e meio ambiente

Analisando os dados sob uma perspectiva sociológica, Pierre Bourdieu foi o referencial teórico escolhido pelo mestre da Faculdade de Odontologia da USP. O francês era um estudioso das relações de poder entre sociedades. A tese indicou de que forma a relação dos índios com os “brancos”  se estabelece na alimentação, acesso a saúde e identidade.

Ele casou Pierre Bourdieu com a Grounded Theory, uma forma de sistematizar dados qualitativos. Depois de gravadas, as discussões das aldeias foram transcritas, analisadas, e postas sob a Grounded. Ela relaciona temas, forma categorias, e no final tenta chegar em uma teoria central que explica o fenômeno.

Soares relacionou os resultados com alguns conceitos do sociólogo francês, entre eles a violência simbólica. “A violência simbólica age da cultura dominante para as periféricas, e ali ela está presente de duas formas principais: industrializados e modelo de saúde. Os ocidentalizados acham que isso é natural, comer industrializados, e que o modelo de saúde também é. Mas na verdade os alimentos trazem doenças e o modelo de saúde gera conflito com o tradicional.”

Essa estratégia dos “brancos” também fere o chamado Capital Étnico dos povos indígenas. Se para nós capital cultural é educação institucionalizada para eles é conhecer a própria história. Saber de seu povo é sinônimo de poder. Os indígenas que vivem mais isolados têm mais disponibilidade de manter estruturas ambientais, conseguindo um capital cultural muito maior e, dessa forma, criar estratégias para barrar essa violência simbólica. Em sua terra, eles cultivam sementes centenárias e raras. Gustavo conta sobre melancias amarelas e milhos vermelhos.

Não houve recorte geográfico na pesquisa, apenas etário. Soares trabalhou com adultos, na faixa de idade determinada pela Organização Mundial da Saúde, de 35 a 44 anos. Sozinho, ele fazia exames bucais e aplicava questionários no chamado método transversal, em que visitava cada família apenas uma vez. Os exames bucais eram familiares aos indígenas, já que em todas as aldeias existe uma Unidade Básica de Saúde (UBS). Mas mesmo com os dentistas visitando o local algumas vezes por semana, parte da população, totalmente dependente do SUS, tem um nível de necessidade muito alto, não comportado pelo sistema. Dor de dente e cáries são as maiores ocorrências, chamando a atenção de Gustavo o número de dentes perdidos.

Os números indicam que o tratamento nas UBS acaba se resumindo a extração de dentes, com ausência de uma cultura preventiva ou restauradora. Ele explica que problemas mais complexos, como o tratamento de canal, são repassados para a rede de CEOs (Centro de Especialidades Odontológicas), nos quais os indígenas têm dificuldade de chegar.

Certos Centros ficam a 120 km das aldeias e, o que dificulta os tratamentos, que se arrastam por algumas sessões. A alternativa é financeiramente inviável para a população que, em conjunto com o dentista, na UBS, vê na extração a única opção para acabar com a dor.

Na coleta de dados, o estudo concluiu que mais de 70% dos indígenas dependem de auxílios do governo como o Bolsa Família. Além de afetar acesso a médicos, a dieta das tribos também é modificada. Nos últimos anos, várias famílias relataram ter perdido o benefício. É um retrato de outro fato sensível a esses povos: a insegurança alimentar, ainda mais gritante para as urbanizadas aldeias próximas aos “brancos”.

Os povos mais distantes ainda têm uma dieta parcialmente autossuficiente, derivada das plantações na própria terra. Entretanto, o arrendamento do território por fazendeiros diminuiu as possibilidades de caça e o espaço para plantio, e força a introdução de alimentos industrializados para complementar as refeições.

Soares se surpreendeu com as grandes plantações de soja em pleno território indígena, e diz que os nativos sentem pela introdução da “comida de branco”, a quem conferem um caráter negativo e prejudicial a saúde.

Entre os índios, o conceito de saúde transcende o significado acadêmico, e até mesmo questões ligadas a terra também dizem respeito a isso. Gustavo frisa a falta de sensibilidade no trato dos “ocidentais” para com os povos kaingang e guarani: “Quando essas unidades de saúde entram no território, com profissionais que não estão preparados pra essas diferenças culturais, acaba tendo um choque. Os dentistas acabam dando instruções muito genéricas e simplistas, verdadeiros jargões: escovar os dentes três vezes ao dia, não comer doce, passar fio dental. Isso não tem nada a ver com a realidade que eles estão vivendo, lá eles estão passando fome.”

Além disso, algumas aldeias não entendem o modo de trabalho dos dentistas. Por pensarem de forma muito coletiva, eles estranham que os profissionais não façam visitas domiciliares e atendam toda a família, já que pensam nas necessidades do grupo.

Para continuar discutindo identidade e sua apropriação, o pesquisador pretende realizar seu doutorado com uma população indígena da capital paulista. “Quero estudar os pankararu, do Real Parque, uma questão totalmente diferente mas que ainda trabalha a invisibilidade, uma questão ainda maior de identidade, do que é ser índio.”

 

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