Prestação de serviço via aplicativo carece de regulação específica

Pesquisador da USP propõe adaptações às leis existentes visando corrigir lacunas do Direito do Trabalho

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Uber Eats é um dos aplicativos que conecta usuários e prestadores de serviço (Foto: shopblocks; sob licença Creative Commons BY 2.0)

Desde o momento que James Watt, no século XVIII, criou uma eficiente máquina a vapor e viu nesse invento a oportunidade de otimizar a produção manufatureira, a tecnologia passou a ocupar papel vital na organização trabalhista. A partir de então, a quantidade e necessidade dos postos de trabalho passaram a depender fortemente da capacidade do maquinário disponível, sendo o ser humano comumente contratado para gerir e operar os robôs e equipamentos mecânicos, fossem eles esquinadeiras, colheitadeiras, máquinas de solda etc. A relação homem-máquina, porém, tornou-se ainda mais complexa com a introdução dos softwares, big data e da inteligência artificial, que comandam aplicativos como Uber, Rappi, Airbnb, entre outros que intermediam a prestação dos mais diversos serviços. Pensando nas novas demandas geradas por essa “segunda era das máquinas”, o pesquisador da Faculdade de Direito da USP, Renan Bernardi Kalil, propôs em sua tese de doutorado regulações de atividades de crowdwork e do trabalho sob demanda via aplicativos, sugerindo normas que protejam os prestadores de serviço ao mesmo tempo que não comprometam a fluidez e eficiência promovidas pela tecnologia.

Dentre as principais características agudas nesse modelo ainda recente de trabalho, há o papel exagerado dos algoritmos na gestão dos serviços. Por se tratarem de códigos computacionais, esses conjuntos de instruções automatizadas podem ignorar as nuances do comportamento humano e tratar os problemas naturalmente surgidos em uma atividade laboral de modo que se desconsidera o contexto social no qual se insere o imbróglio. Além disso, a deterioração das condições sociais do Brasil pode fazer com que pessoas em penúria financeira se submetam a longas jornadas de trabalho e ajam submissas a um sistema de avaliações por parte dos usuários — vital para a reputação do trabalhador, mas que carece, por exemplo, de um eficiente agente humano de contestação das notas recebidas.

Foi pensando em todas essas questões que Kalil propôs a divisão desses empregados em três tipos: subordinados, autônomos e dependentes. No primeiro caso, um motorista de aplicativos, por exemplo, haveria de estabelecer com a empresa de transporte (i.e Uber, 99 e similares) uma relação de empregado como prevista na CLT. Sendo o caso, a modalidade de contrato intermitente contaria com um preço dinâmico — calculado a partir de um multiplicador sobre o valor do salário-hora da categoria a qual o trabalhador pertence — e o direito a uma carga horária mensal mínima, mensurada a partir da média da jornada dos quatro meses anteriores.

Aos trabalhadores autônomos haveria a busca por garantir direitos básicos previstos pela Organização Internacional do Trabalho: liberdade sindical e o reconhecimento efetivo da negociação coletiva, a erradicação de todas as formas de discriminação em matéria de emprego e ocupação, dentre outros. Tais garantias poderiam ser úteis em questões do tipo e evitar represálias a greves, como a ameaçada por motoristas de aplicativos no início de 2019 após problemas de segurança.

Além disso, Kalil propõe medidas específicas que garantam a prestador de serviço poder transferir sua avaliação ao migrar de um aplicativo a outro semelhante, de modo a manter sua reputação inatingida pela mudança de plataforma. Essa prática poderia ser adotada com base no art. 18, V da Lei n. 13.709/18, que trata da possibilidade do titular de dados pessoais transferir suas informações de uma empresa para outra. “Considerando que o modelo de avaliação que as plataformas estabelecem podem ter diferenças entre si, seria importante a criação da regulamentação de alguns aspectos desses sistemas, para que as notas que os trabalhadores recebem sejam compatíveis entre distintas plataformas. Essa regulamentação poderia ocorrer por meio de atos do Poder Executivo”, comenta Renan. Em adição, haveria maior acesso às informações do preço e oferta de trabalho e à transparência quanto à importância das avaliações para a plataforma, a fim de evitar que notas injustas dadas por clientes com motivações diversas possam comprometer um histórico de trabalho competente.

A categoria mais específica, todavia, seria a do trabalhador dependente. Essa classificação se aplicaria para condições bem delimitadas, onde o cidadão dependesse da plataforma para prestar o seu serviço dado o fato de só através dessa ele conseguir se conectar ao consumidor final. Além disso, sua principal fonte de renda teria que ser esse trabalho, havendo dependência plena da plataforma virtual para obter seu sustento.

“A diferença entre o trabalho subordinado e o trabalho dependente é que, enquanto o primeiro analisa a extensão do controle que a empresa exerce sobre a forma pela qual o trabalho é realizado — ou a dimensão da integração das atividades realizadas pelo trabalhador na plataforma —, o segundo trata da dependência do trabalhador em relação a empresa para executar o trabalho e para obter renda de suas atividades. Há uma principal diferença entre os direitos que seriam atribuídos aos trabalhadores subordinados e dependentes”, pontua.

Buscando evitar que a dependência extrema do trabalho leve à precarização das atividades laborais, a classificação como dependente prevê garantias da CLT e outras medidas de proteção social como limitação da jornada de trabalho em 44 horas semanais e 8 horas diárias, podendo realizar-se até 2 horas extraordinárias por dia. Em adição, seriam garantidos descanso semanal remunerado e reembolso dos custos necessários para a prestação do trabalho, como combustível e manutenção de veículos para os casos das plataformas de transporte. “Para os trabalhadores subordinados se aplicaria o que a CLT estabelece para os empregados atualmente. Para os trabalhadores dependentes, haveria a aplicação de direitos previstos na Constituição e alguns da CLT. Contudo, como essa categoria teria maior flexibilidade para determinar os seus horários de trabalho e para escolher onde trabalhar, alguns direitos que normalmente se reconhecem aos subordinados, como o adicional noturno, não se aplicariam a eles. Além disso, não haveria responsabilidade da plataforma em face dos trabalhadores em casos que decorram dessa liberdade na fixação dos horários de trabalho”, completa o pesquisador, que considera importante que o Direito do Trabalho siga acompanhando a evolução das relações de trabalho, com o objetivo de identificar e tratar as demandas e impactos que surgem em um sistema cada vez mais dinâmico.

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