Pesquisadora propõe alternativa para apropriação cultural no universo da moda

Aplicação conjunta de legislações que regem a propriedade intelectual e o patrimônio cultural pode ser saída para evitar imbróglios como o uso indevido de trajes típicos

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Tribo do Quênia exibe trajes típicos durante cerimônia tribal (Foto: Ethan McArthur sob licença Creative Commons)

Em busca de inspiração para suas coleções, grandes marcas passaram a buscar referências em trajes típicos, gerando controvérsias no campo sociológico e também no âmbito da fashion law — a área jurídica que aborda os direitos autorais e propriedade intelectual da indústria da moda. Foi pensando em soluções eficientes para eventuais conflitos entre companhias e grupos sociais que a pesquisadora da Faculdade de Direito da USP, Luiza Silva Balthazar, baseou seu mestrado; numa dissertação que aponta possíveis caminhos para a resolução dessas disputas e busca entender, também, se o enquadramento da moda como patrimônio cultural traria, por outro lado, limitações aos direitos de propriedade intelectual e comercialização por seus criadores.

De acordo com Balthazar, um dos principais problemas encontra-se no fato de vestimentas típicas serem resguardadas e enquadradas no sistema jurídico como patrimônio cultural. Esse patrimônio tem menos proteção intelectual, já que os trajes carecem de datações precisas referentes à sua autoria. Esse tipo de obra só é protegido pelas leis autorais quando se fixa em algum suporte. Então, em síntese, há necessidade de duas coisas importantes: que as obras sejam materializadas e que tenham um autor. “Quando olhamos, porém, para comunidades e grupos étnicos tradicionais, percebemos que eles não seguem essa lógica e é comum haver obras de tradição oral e sem autor conhecido. Para eles pode não ser relevante conhecer o indivíduo específico que, ao longo da história, criou elementos culturais e lendas. E nossa legislação não consegue endereçar bem esses problemas e características”, comentou.

Um caso recente abordado pela pesquisadora e causado pelas peculiaridades desse tipo de produção foi o lançamento de modelos das sandálias Havaianas que continham estampas indígenas. Na ocasião, a Alpargatas, fabricantes dos calçados, contratou o direito de uso e produção das estampas através de um membro da tribo em questão. Entretanto, pouco tempo depois, outros membros contestaram o licenciamento, afirmando que o indígena que negociara com a empresa não era representante designado de seu grupo. Além disso, oito outras tribos afirmaram que tais estampas também continham traços culturais seus, sentindo-se lesadas por não terem sido contactadas e remuneradas.

Além disso, as disputas não se restringem somente ao Brasil: dentre os casos problemáticos analisados, há, por exemplo, o do estilista inglês Matthew Williamson, que em 2007 lançou uma coleção baseada em trajes culturais etíopes sem citar e compensar ninguém do país africano. A insatisfação foi grande, e um membro do escritório de propriedade intelectual da Etiópia chegou a manifestar publicamente seu descontentamento, afirmando que os trajes eram “das nossas mães e avós. Eles simbolizam nossa identidade, fé e orgulho nacional. Ninguém tem o direito de chamar esses modelos de seus”. O inglês não procurou se desculpar e, pelo contrário, justificou que o estilo da mulher moderna daria-se pela incorporação de diferentes culturas ao redor do globo.

O desconforto causado foi enquadrado pela pesquisadora como um típico efeito danoso da apropriação cultural, quando elementos que vão muito além do apelo visual são transformados em meras peças de design e ofendem seus usuários originais. Alguns povos, como os Maasai — que habitam porções do Quênia e da Tanzânia —, já até se organizaram e criaram grupos focado na defesa de sua propriedade intelectual, a fim de evitar que empresas estrangeiras lucrem com produtos inspirados em seus trajes típicos sem que haja uma devida recompensa.

O grande conflito entre os sistemas de proteção à propriedade intelectual e preservação do patrimônio cultural dá-se pelo fato do primeiro depender justamente da obra finalizada e devidamente identificada, enquanto o último se apoia na história, relatos e declarações, sem definir claramente os direitos que os detentores do bem imaterial podem exercer. Dado isso, simplesmente impor o esquema de propriedade intelectual às vestimentas tradicionais poderia, de acordo com Balthazar, causar efeitos negativos como a ‘comoditização’ dos trajes, a redução da cultura a um objeto estático e a submissão de comunidades tradicionais à uma lógica de mercado que não se aplica à sua estrutura socioeconômica. Logo, seria necessária uma aplicação consciente e ponderada de ambos os sistemas jurídicos, buscando contextualizar e resolver eventuais conflitos.

Ao longo da dissertação, a pesquisadora inclusive faz uma análise comparada entre as legislações de diversos países, citando, por exemplo, a eminência da Bolívia como um Estado que vai além do que é estabelecido pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, na sigla em inglês) nessas tratativas. De acordo com a cientista, muito disso se dá pelo fato da Bolívia ser uma nação de maioria indígena, facilitando que suas instituições governamentais compreendam melhor a demanda desses povos.

O exemplo boliviano é um bom indício de que a via mais eficiente passa pela ponderação entre os diferentes sistemas legais, de modo que as comunidades sejam ouvidas e respeitadas em suas escolhas e, ainda assim, as marcas possam dar prosseguimento às suas criações sem um excesso de limitações desnecessariamente burocráticas. “Quando pensamos em proteção intelectual para qualquer coisa também não podemos pensar em um excesso de limitação à liberdade de expressão das pessoas. Os direitos têm que conversar, mas isso não quer dizer que haja ‘carta branca’ para fazer qualquer coisa. Na verdade, o problema é que de um lado há muita proteção e de outro lado, pela letra fria da lei, há um registro que parece ser feito para fins históricos”, afirmou.

Luiza inclusive cita o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como uma autarquia que se esforça em dar voz aos povos e, desse modo, evitar posteriores conflitos. “A chave para resolver esse problema está em dar voz a essas comunidades, para as pessoas que são titulares dessas práticas culturais

Vale destacar que em vários casos o Iphan busca seguir esse caminho de conversar com as tribos, entender as demandas, e acho que o caminho vai muito por aí. Não conseguiremos desenvolver um sistema mais justo a partir da mesma visão. Precisamos entender a realidade dos diferentes povos, as suas demandas”, completou a especialista, reforçando a sua ideia de mesclar conscientemente diferentes códigos legais a fim de permitir a evolução da indústria da moda, ao passo que haja valorização da arte tradicional e histórica.

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