Programa de visitação domiciliar amplia participação de jovens mães

O programa é de um grupo de pesquisa já premiado no ano passado e está recrutando jovens mães de baixa renda

Kaiky em atividade realizada pelo grupo de pesquisa. Fonte: Leticia Silva/ Arquivo pessoal

Está em andamento uma nova fase de estudo que tem como objetivo demonstrar a importância da atenção aos bebês, sobretudo nos primeiros mil dias, com o intuito de sugerir, futuramente, a criação de políticas públicas voltadas a esse período. Por meio de pesquisa, busca-se testar a eficácia da redução de fatores de estresse, como a violência, e da exposição do bebê a maus-tratos para o benefício de seu desenvolvimento cognitivo.

Os pesquisadores trabalharam com jovens mães em situação de adversidade socioeconômica, mais especificamente em comunidades da Zona Oeste da cidade de São Paulo. Ao definir o perfil da amostragem, entendeu-se que em condições de menor acesso a serviços no geral, o atendimento seria mais consensualmente urgente.

Metade das mães faz parte da amostra de controle, passando apenas pelo pré-natal convencional, e a outra metade recebe o programa de visitação das enfermeiras do Primeiros Laços. O projeto é fruto de uma parceria entre o Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD) e a Escola de Enfermagem da USP (EE).

Samuel e sua família receberam o programa de visitação da pesquisa. Fonte: Leticia Silva/ Arquivo pessoal

O estudo, em vigência desde agosto de 2018, é a continuação de uma primeira pesquisa (2015-2018), já vencedora do Prêmio Abril & Dasa de Inovação Médica 2018, na categoria Inovação em Medicina Social. A mudança entre os trabalhos foi na amostragem: deve crescer de 80 para 200 mães – o que dá maior sustentação estatística ao estudo – e alterou seu recorte etário – antes, dos 14 aos 19 anos e, agora, dos 14 aos 20.

Atualmente, a pesquisa está na fase do recrutamento de mães, que acontece por intermédio das 14 Unidades Básicas de Saúde (UBS) da região do Butantã. Sobre a realização do projeto e questões vinculadas, a AUN entrevistou autoras do projeto. Anna Chiesa, uma delas, explica: “Quando jovens daquela categoria de idade procuram a unidade para um teste de gravidez e recebem a resposta positiva, a UBS encaminha seus nomes para o grupo de pesquisa”. É exigido que a mãe esteja na primeira gestação e não seja portadora de certas doenças, por exemplo. Caso a mãe de perfil adequado queira participar, há um sorteio que determina se ela ficará no grupo de controle ou no que efetivamente recebe as visitas.

A versão piloto e a atual da pesquisa compartilham intenção e metodologia. Através da visitação domiciliar, uma enfermeira instruída para a participação no estudo acompanha a mãe e o bebê desde a 16ª semana de gestação, passando pelo puerpério (período de aproximadamente dois meses após o parto), até os dois anos da criança. A frequência das visitas é variável de acordo com a demanda de cada etapa do processo, mas é majoritariamente quinzenal. A sua duração costuma variar de quarenta minutos a uma hora.

A intervenção

Ao longo de toda a intervenção (ou visitação), as enfermeiras seguem protocolos para atender a cinco eixos principais, que incluem saúde da mãe e do bebê; organização e relações do ambiente. E, também, parentalidade; família e rede social de apoio; progressão da vida da própria mãe. A maior parte da ação das visitadoras recai sobre a jovem, mas com o alvo do estabelecimento do vínculo entre ela e o bebê. As enfermeiras têm um treinamento prévio que dura dois meses, mas continua como um processo de educação permanente, por meio de supervisões semanais, nas quais se discutem os casos, e de complementações por textos e vídeos.

Por uma abordagem tátil e especializada, a atuação das visitadoras conta com leituras, preparação da casa e orientação para a amamentação. Mas seu diferencial é trabalhar com o empoderamento da mãe e com o estímulo do pensamento autônomo. A enfermeira antecipa movimentos que serão necessários na rotina da casa após a fase em que a família conta com o programa. Através da proposição de questionamentos coletivos sobre questões do dia-a-dia, ela instiga a capacidade reflexiva e executiva da mãe e dos familiares.

As visitadoras ajudam a pensar até mesmo em possibilidades para aumentar a renda da família, auxiliando as mães a fazerem currículos, por exemplo. Anna Chiesa, que é também pós-doutora e professora, diz que, em relação a programas estrangeiros “temos que fazer adaptações para que o projeto responda à nossa realidade. Nesse sentido o programa é inédito. Encontraríamos dificuldades se apenas importássemos outros.”

Parentalidade Positiva

Todas essas ações situam-se abaixo de uma preocupação diretora, a de instigar e formar a “parentalidade positiva”, ou seja, um “comportamento parental baseado no melhor interesse da criança e que assegura a satisfação das principais necessidades das crianças e a sua capacitação, sem violência, proporcionando-lhe o reconhecimento e a orientação necessários, o que implica a fixação de limites ao seu comportamento, para possibilitar o seu pleno desenvolvimento”, segundo Recomendação do Conselho da Europa, de 2006.

 

Felipe e seus pais, Maira Ellen e Jobert, são uma família que participou do programa. Fonte: Leticia Silva/ Arquivo pessoal

Apesar de essencial, essa diretriz, de certa forma, subverte a ótica ainda socialmente difundida de que a jovem deve ser punida por engravidar. Sobre o tema, outra autora do projeto, a também pós-doutora e professora, Lislaine Aparecida Fracolli, afirma que: “às vezes, a postura do Estado é um pouco punitiva com a adolescente que engravida. As portas se fecham”.  Quando em atendimentos médicos, esse pensamento se manifesta como “violência obstétrica”. 

 Segundo publicação do Ministério da Saúde, a violência obstétrica “acontece no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento ao abortamento” e pode ser “física, psicológica, verbal, simbólica e/ou sexual, além de negligência, discriminação e/ou condutas excessivas ou desnecessárias ou desaconselhadas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas”. As práticas, muitas vezes desnecessárias e desrespeitosas, “impedem [a mãe] de exercer seu protagonismo.”

Prova da expressividade do fenômeno violento e vexatório foi a implementação da Rede Cegonha no Sistema Único de Saúde (SUS), em 2011. Ela serve para “assegurar à mulher o direito ao planejamento reprodutivo e à atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e ao desenvolvimento saudáveis”. Visa a abolir práticas como, por exemplo, ameaças, gritos, chacotas, piadas; omissão de informações, desconsideração dos padrões e valores culturais das mães; divulgação pública de informações que possam insultar a mulher; não permitir acompanhante que a gestante escolher; não receber alívio da dor. Mas, segundo despacho divulgado pela gestão atual do Ministério da Saúde, extinguiu-se o uso da expressão “violência obstétrica” dentro do próprio órgão. A opinião de especialistas divulgada na grande mídia sinalizou que a abolição poderia dificultar as medidas contrárias a esse tipo de abuso. 

Seguir o princípio da parentalidade positiva se contrapõe à lógica punitiva às mães na medida em que coloca o bebê como prioridade máxima. Da concepção por diante, todo o esforço deve ser em fazer o entorno do bebê o mais acolhedor e adequado possível para o seu desenvolvimento. Fatores anteriores, como os que envolvem condenações morais à mãe, não se relacionam ao bebê, e, por tanto, não devem pôr em risco o seu bem-estar.  A conduta, então, frente à mãe, deve ser unicamente de suporte e amparo.

A intervenção e a atenciosidade fornecidas pelas enfermeiras do grupo Primeiros Laços só foi acessível às mães que as receberam por conta da vigência da pesquisa: por enquanto não existe no Brasil um programa de visitação domiciliar público e gratuito.

A assistência concedida a elas é oferecida pelas próprias UBS, em forma de educação em saúde com direcionamentos mais pontuais, por exemplo, receitas de papinhas, procedimentos de banho e livros recomendados. Muitas vezes as jovens têm acesso a esse tipo de informação, mesmo pela internet, mas não as aplicam na prática. Embora seja importante, esse auxílio técnico é insuficiente nos casos que envolvem gestações mais complexas, como a de jovens adolescentes em condição de adversidade socioeconômica.  

Segundo Lislaine Fracolli, “consideramos que o nosso trabalho seja mais eficaz, pois não é um treinamento que se passa para a jovem, mas sim algo que busca uma mudança de postura, de consciência de percepção do papel que desempenhará”. Anna Chiesa acrescenta: “A ideia não é substituir o serviço, mas construir um sentido para o cuidado [do bebê] e desenvolver uma competência de cuidado sensível e responsável”.

Resultados e perspectivas

O programa de visitação é caro, pois, além de precisar de um profissional especializado, têm extensa duração. Mas dessa forma ele consegue desenvolver aspectos como os pontuados por Anna. Esses se traduzem em resultados observados na pesquisa como a estruturação de uma rotina e a implementação de cuidados básicos ao bebê.

Quanto às habilidades cognitivas (como as que envolvem memória, percepção, atenção e a resolução de problemas) resultados preliminares apontam para uma melhora referente à linguagem. E outro ganho percebido foi a taxa de apego seguro, que cresce na medida em que o bebê tem suas necessidades ouvidas — foi muito maior em bebês do grupo acompanhado pelas enfermeiras do que nos de controle. Quanto maior essa taxa, menor a predisposição do bebê a desenvolver drogadição e transtornos de ansiedade no futuro, por exemplo.

O programa quer contribuir para a formação de mães autônomas, ou seja, prontas para assumir as responsabilidades por seu filho, da gestação em diante, e capazes de oferecer o mesmo cuidado caso haja mais gestações — uma vez atendida pelo programa, a mãe já estaria preparada. No mais, ela poderia até mesmo incentivar a postura responsável em outras mães de seu círculo social.

Como outras políticas de longo prazo, essa requer investimento, mas já demonstrou resultados que apontam para a sua eficácia em pontos muito importantes do desenvolvimento do bebê e, logo, do futuro cidadão. A perspectiva do grupo de pesquisa é que venha a existir um programa público acessível a jovens mães em situação de adversidade socioeconômica, mas que esse também possa ser mais amplo para apoiar todos os casos em que a gestação e a construção da parentalidade devem se dar por entre fatores mais complexos, já que isso não é exclusivamente característica das mães cujo perfil é contemplado pela pesquisa.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*