São Paulo independente: progresso ou atraso?

Pesquisadores e líder separatista discutem as possibilidades e consequências da independência do estado

Por André Netto, Diego Bandeira, Eduardo Neves, João Vitor Ferreira e Pedro Smith

Ao mesmo tempo que as discussões e incertezas marcam a saída do Reino Unido da União Europeia, Flávio Rebello, dentre outras coisas, apresenta cartazes políticos originais de 1932, pertencentes ao acervo do movimento São Paulo Livre (SPL) e se dedica a divulgar sua causa. Presidente do movimento fundado em 2014, o bacharel em Direito e professor de idiomas se dedica a comandar a organização, financiada pelos membros e simpatizantes, e difundir a ideia de que é possível — e justificável — separar São Paulo do resto do Brasil.

“Eu faço a seguinte analogia: qual a diferença de uma casa e uma prisão? Ambas são moradias, mas na prisão não há possibilidade de sair. Atualmente, o Brasil é uma casa ou uma prisão para São Paulo?”, questiona Rebello, enquanto apresenta banners explicando todas as mudanças que seriam feitas numa hipotética República de São Paulo. De acordo com o presidente, não se trata de ideias utópicas, e de fato tem-se um plano concreto a ser executado. “O nosso objetivo é convencer as pessoas de que vale a pena, há base histórica e econômica e dá para fazer. Se conseguirmos, que demore um ano ou cem: São Paulo virará um país”, explica.

Grande parte da inspiração prática do movimento vem da Catalunha, região do sul da Espanha que possui ações separatistas de longa data. Recentemente, o parlamento local chegou a assinar uma declaração de independência após um referendo no qual a maioria dos votantes optou por se desvencilhar de Madri. Na ocasião, o governo espanhol agiu com veemência e dissolveu as autoridades políticas e policiais da província. Paralelamente, a comunidade internacional, balizada pela União Europeia, rechaçou qualquer apoio à causa, muito pelo medo de que o sucesso catalão pudesse inflamar movimentos semelhantes.

Série de souvenirs produzidos pelo SPL (Foto: Eduardo Passos)

Na opinião de Flávio, o início do processo chefiado pelo governo de Barcelona foi feito da forma mais correta, e seria um modelo para São Paulo. Desse modo, caso fosse comprovada uma intenção da maioria da população paulista em se separar e uma declaração formal fosse assinada pelo líder local, no caso o governador, haveria forte legitimação do movimento. “Imagine um grande apoio da população e do empresariado, chegando até à Assembleia Legislativa. Nisso, o Governo Federal ameaça intervir e a Assembleia passa uma lei declarando a independência e essa é sancionada pelo governador. Essa parte formal é estritamente necessária para que as Nações Unidas ao menos se deem ao trabalho de encarar com seriedade o movimento e analisá-lo. Não adianta um clamor da população sem alinhamento com os políticos locais”, explica.

Uma ação do governo brasileiro seria esperada, e, conforme ocorrera em Barcelona, eventuais manifestações de violência por parte da União só serviriam para corroborar, frente à comunidade internacional, o desejo dos paulistas. O fator econômico, inclusive, seria uma barganha diplomática, e países que reconhecessem São Paulo logo teriam prioridades nos negócios. O poder de compra seria amplo, já que a entidade calcula que o orçamento aumentaria em dez vezes com a retenção dos tributos que são repassados a Brasília, mas não retornam em forma de investimentos para o estado.

Além do argumento econômico, o SPL também conta com argumentos históricos para apoiar sua causa e formar a identidade paulista. De acordo com eles, sempre houve uma rica e particular história paulista, independente do resto do Brasil. A Portugal, porém, nunca foi útil dar muita autonomia à província, que teria sido reprimida e seus elementos culturais únicos apagados.

Na contemporaneidade, um dos responsáveis por reforçar a ideia de um Brasil único, com regionalidades fracas, seria Sérgio Buarque de Hollanda. Em contraponto, Rebello aponta sua crença em Paulo Prado, que defendia uma visão de um Brasil pouco coeso; mais unido pela fraqueza e desorganização causada pelos desmandos da colonização do que por uma identidade nacional. “Brasileiro só se sente brasileiro durante as eleições e durante Copa do Mundo”, diz Flávio.

Muito polêmico, Prado é frequentemente criticado por acadêmicos que apontam aspectos racistas e supremacistas em sua obra, porém o presidente do SPL reforça por diversas vezes que não há preconceito em seu movimento. Ele, inclusive, preocupa em citar os casos de nordestinos que moram na cidade e que são discriminados e reforçar que esses, por exemplo, seriam considerados cidadãos paulistas automaticamente. Além disso, o Ouro, moeda que seria instituída, conteria em suas cédulas nomes como Luís Gama — abolicionista negro — e Maria Sguassábia — citada como a ‘Mulan paulista’ —, como forma de representar simbolicamente a pluralidade de formação da nação.

De acordo com Flávio, a ideal República adotaria um modelo de circulação de pessoas semelhante ao que ocorre no Mercosul, sem necessidade de passaportes. Mas mais de 70 postos de fronteira seriam criados para controle, em caso de um fluxo intenso e assimétrico de pessoas vindas de fora. Paralelamente, as regras para residência seriam um pouco mais rígidas e analisadas caso a caso.

Um dos exemplos que o ativista cita é do visto D2 português, que estimula a ida de empreendedores para o país europeu sem necessariamente transferir o capital para lá. O país, porém, se beneficia da geração de empregos e da transferência de know-how com a presença física das companhias. “Ninguém seria barrado por questões raciais, demográficas e coisas do tipo. Mas suponhamos que você tenha antecedentes criminais pesados: nesse caso é mais complicado de autorizarmos a entrada. A ideia é ter controle, não é barrar todo mundo. E isso vale para os dois lados: o PCC, por exemplo, é ‘cria nossa’. Não queremos ‘cria nossa’ saindo daqui para ‘ferrar’ o quintal do vizinho”.

Como seria São Paulo livre?

Para ajudar a imaginar esse cenário hipotético, o professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, Pedro Feliú, discorre, em entrevista à AUN, sobre como seriam as relações entre Brasil e São Paulo. Ele apresenta dois fatores cruciais que determinariam as relações entre os dois países: o reconhecimento do novo país pelo Brasil e as relações econômicas entre ambas as nações.

O especialista em ciências políticas explica que, na hipótese do Brasil reconhecer São Paulo, as consequências seriam quase nulas, já que provavelmente um acordo de mercado seria feito entre os dois países. Mas, caso não haja um acordo entre ambas as partes, a nova nação teria sérios problemas econômicos: “Já na hipótese de afastamento diplomático, São Paulo perderia dinamismo econômico em termos de mão-de-obra (qualificada e não-qualificado), mercado consumidor, acesso a matérias primas e insumos para a indústria, além de ter que exportar muito mais do que exporta hoje. Acredito que a política externa seria aspecto crucial, como o caso de Taiwan, por exemplo.”

De acordo com Flávio Rebello muitas fotos oficiais das revoltas de 1932 foram modificadas pelo Governo Federal, inserindo nelas elementos nacionais. O grupo apresenta registros época como prova da adulteração. (Foto: Eduardo Passos)

Embora os organizadores vejam como possível a hipótese de separação, esse processo é arriscado e existem diversos fatores que precisam ser levados em consideração. Primeiro: conseguir apoio externo. Entretanto, nações próximas temeriam que o movimento paulista motivasse outros movimentos em seu território, causando um “efeito dominó”. O que seria mais possível é buscar apoio de países fora da América do Sul: “Países mais distantes poderiam se interessar comercialmente, mas o Brasil ainda teria um papel chave nisso. Tudo depende de como for o movimento separatista. Um caso mais recente é o do Sudão do Sul. O primeiro país a reconhecê-lo foi o próprio Sudão. A nova nação não teve dificuldade em obter um forte reconhecimento internacional. O processo foi rápido: mais de 115 nações reconheceram a nova nação no mesmo ano de sua criação e 50 estabeleceram relações diplomáticas.”

Diferente do caso do Sudão, salienta Pedro, há o da Chechênia. O território tenta sua independência junto à Rússia há muitos anos, chegando a proclamá-la em 1991, o que levou a primeira guerra da Chechênia. Os conflitos armados são um empecilho para conseguir apoio estrangeiro, em casos como esse. Na hipótese de São Paulo se separar, Pedro acredita que há uma maior possibilidade de que ocorra uma guerra civil, ao invés de um acordo pacífico.

Duas vertentes: identidade e economia

Os movimentos separatistas têm muitas características semelhantes entre si. De acordo com o professor do Instituto de Relações Internacionais da USP, Vinicius Guilherme Rodrigues Vieira, os dois principais fatores envolvendo o surgimento de movimentos separatistas são a questão da identidade local e o peso econômico da região. “Muitas vezes esses dois vieses atuam em conjunto, até onde eu sei todos os movimentos evocam essa questão. No caso específico de São Paulo há a força econômica, que sobreviveria fora do Brasil, podendo ser um país soberano, e não apenas ter a autonomia política. Já a identidade envolve elementos que vão desde a língua, etnia e cultura que marcam a distinção daquela população do resto do país”, explicou.

Os dados do PIB de 2016 mostram a importância econômica do estado para o Brasil: o PIB paulista é o maior do país, e corresponde a quase um terço da arrecadação total, além de ser três vezes maior do que o do segundo colocado, o Rio de Janeiro. Também é o estado mais populoso, com mais de 22 milhões de habitantes.

Exemplo utilizado pelo São Paulo Livre, a Catalunha também se configura como grande pólo econômico de seu país. Seu PIB sozinho seria o 11º em um ranking hipotético considerando os 28 países da União Europeia, e condensa um quinto da arrecadação espanhola, muito por conta de sedes de bancos e fábricas de grandes multinacionais em seu território. Outro ponto importante é que a região só fica atrás da Andaluzia em termos populacionais.

Toda essa importância econômica frequentemente resulta em reivindicações relativas aos impostos, que são distribuídos de forma diferente da arrecadação e não são reinvestidos nos locais de origem. Vieira relembrou que “alguns senadores do nosso estado, como o Serra, já utilizaram tal argumento há um tempo atrás. A causa separatista, se eventualmente ganhar força, pode levar Brasília a fazer reformas descentralizadoras”.

São justamente essas pautas descentralizadoras que podem iniciar o processo de construção do ideal separatista. “É interessante pensar nessas pautas que não são necessariamente separatistas mas podem ser mobilizadas por movimentos, como ocorreu na Espanha e Escócia. Antes deles chegarem à reivindicação de independência, eles pediam cada vez mais descentralização até que sentiram o momento de que já tinham um governo próprio e não dependiam mais do poder central”, afirmou o professor.

Nestes países, a descentralização caminhou junto com a construção de uma identidade regional, que, para Vieira, não tem fundamento: “A Catalunha tem mais de mil anos de história e mesmo assim você não pode dizer que há um sentimento genuíno de ser catalão. Muito disso é reelaboração que começou com a descentralização das políticas educacionais”.

A educação tem papel central na construção da identidade destes grupos, já que forma novas gerações com pensamento separatista desde o início. O professor relembra que “desde 2004, na Catalunha, eles passaram a ensinar, majoritariamente, o currículo em catalão. Mas a questão não é apenas a língua, que já é muito forte, mas também o que está sendo ensinado em catalão: que a Catalunha sempre teve uma identidade distinta do resto da Espanha”.

No ponto de vista do professor, a questão da identidade é algo que não está presente em São Paulo: “se alguém fosse dar uma consultoria política para os separatistas, a principal dica seria reforçar a questão da identidade, você encucar nas novas gerações que ‘você não é brasileiro, você é paulista’. E hoje, as redes sociais trabalham não só identidades já dadas como também criam essas novas identidades”.

A paulistanidade e os movimentos separatistas de São Paulo

Um dos fatores essenciais no movimento São Paulo Livre é a ideia de paulistanidade. Marina Macedo Rego, em seu mestrado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), estudou o ideal de superioridade paulista – a paulistanidade – e como ela influencia os movimentos separatistas do Estado de São Paulo. “A paulistanidade consiste, basicamente, na ideia de que os paulistas são superiores ao restante dos brasileiros em termos raciais, econômicos e morais”, explica.

Ela ainda conta que esse ideal só pôde se estabelecer enquanto narrativa devido às políticas institucionais de embranquecimento pelas quais passou o Brasil. “Ao fim do século 19 e no início do século 20 o estado, assim como outros locais ao Sul do país, foi destino de diversas populações europeias migrantes. Em um país fortemente marcado pelo racismo e que tentava embranquecer sua população, São Paulo passou a apresentar-se como estado com possibilidade de branqueamento”, afirma Marina. Ela ainda afirma que esse fato fez com que outros locais do país, em especial o Nordeste, fossem cada vez mais estigmatizados, justamente pelo fato de suas populações não terem sido afetadas pelas políticas institucionais de embranquecimento.

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Para a pesquisadora, uma outra característica desse pensamento é pautar o nordestino enquanto inapto politicamente: “Este argumento é visível nos mais diversos contextos políticos, no Massacre de Canudos, no Conflito Constitucionalista de 1932, no processo de Golpe Militar em 1964, na eleição de Luiza Erundina como prefeita da capital em 1988 ou no Golpe ocorrido em 2016, eventos marcados por uma narrativa reacionária que aponta o paulista como detentor do exercício político legítimo”. Ela também enfatiza que o resultado das eleições presidenciais de 2010 e 2014 reavivaram este argumento, visto que o candidato preferido pela maioria de São Paulo perdeu, e assim, o nordestino se tornou alvo de ataques. “Grupos separatistas floresceram no período justamente por isso”, discorre a cientista.

A partir disso, Marina conta que os movimentos separatistas paulistas representam o exacerbamento da paulistanidade, e se baseiam justamente na radicalização desse ideal de supremacia paulista que permeia o senso comum. “Apesar de ser diminuto e quase risível, o separatismo só existe porque há uma ideia generalizada da superioridade paulista”, acrescenta.

Diante dessa perspectiva, o Manifesto São Paulo para os Paulistas consolida-se como um ótimo exemplo: movimento organizado por jovens universitários para discutir a questão da migração e a suposta subvalorização da cultura paulista diante de culturas “estrangeiras”. “Pode-se dizer que o Manifesto se caracteriza pelo ódio explícito aos nordestinos e às populações pobres, e os ataques que se faz aos trabalhadores informais e aos moradores de favelas são gritantes. Além disso, mostra abertamente a falsa ideia de que o paulista é superior”, afirma a pesquisadora.

Ao ser questionada a respeito do Movimento São Paulo Livre, ela diz acreditar que o SPL se caracteriza por tentar apresentar maior “suavidade” em seu discurso. “A paulistanidade, que historicamente se caracterizou pelo racismo e preconceito de classe, foi reconfigurada pelo movimento para mostrar uma suposta tolerância. Qualquer análise mais detida no SPL, no entanto, mostra que o elitismo e o preconceito racial continuam formando a base ideológica do movimento”, afirma Marina, acrescentando que o movimento se utiliza “da velha narrativa histórica e conservadora da paulistanidade, a partir de uma nova roupagem que busca maior legitimidade, em um momento em que os movimentos sociais combatem fortemente expressões preconceituosas”.

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