Protagonismo de mulheres em visitas carcerárias é reflexo dos papéis históricos de gênero

A tripla jornada exercida por mulheres, que dedicam tempo e dinheiro às visitas carcerárias, remete às consequências da divisão sexual do trabalho

Familiares aguardam informações sobre parentes presos na Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa. (Fonte: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

As mulheres têm levado uma dupla jornada de trabalho que se divide entre as tarefas domésticas e cuidado com os filhos, aliadas ao trabalho remunerado. Porém, segundo dados divulgados via Lei de Acesso à Informação, entre o período de 2011 a 2018, 85% das visitas a presos também foram feitas por mulheres, indicando uma tripla jornada. A pesquisadora Mariana Lins de Carli, da Faculdade de Direito (FD) da USP, iniciou neste ano sua dissertação de mestrado na qual busca entender como se dá o protagonismo das mulheres na interação com o cárcere.

Segundo ela, essa tripla jornada acontece devido à continuidade da divisão sexual do trabalho. O que já era feito antes da liberdade, que inclui as tarefas de cuidado como mãe ou companheira, é continuado com as visitas como forma de manter o vínculo por meio dos papéis de gênero. Mariana mobiliza uma concepção que vem do feminismo materialista para afirmar a divisão do trabalho entre reprodutivo destinado às mulheres, e produtivo voltado historicamente aos homens.

Divisão do trabalho como determinante

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o trabalho doméstico não-remunerado é exercido por cerca de 91% das mulheres negras já inseridas no mercado de trabalho. Enquanto isso, os homens negros trabalham e realizam tarefas domésticas em apenas 48,5% dos casos. Para a população branca, as mulheres correspondem a 81,1% e os homens a 50,6%. Isso mostra uma enorme sobrecarga nos ombros das mulheres, com muito mais peso sobre as mulheres negras.

As mulheres carregam um grande acúmulo de trabalho, tanto o remunerado como busca do sustento quanto o doméstico não-remunerado. Mesmo com estudos que mostram uma inserção crescente das mulheres no mercado, na concepção da pesquisadora isso ainda acontece de forma inconsistente. “As mulheres ainda ocupam os postos de trabalho mais precarizados, com menores salários, mesmo exercendo funções iguais.”

Por isso, se as visitas à prisão forem entendidas como uma continuidade do trabalho doméstico e de cuidado com a vida, é possível perceber que as mulheres lidam com uma jornada tripla. “Elas precisam trabalhar de forma remunerada, aliando isso ao cuidado da casa, dos filhos e de outras pessoas que residem no lar, além de passar a oferecer uma grande quantidade de tempo e de dinheiro para fazer visitas e cuidar do familiar preso”, destaca a pesquisadora.

Por que mulheres visitam mais do que homens?

Além das questões históricas que envolvem o tema, Mariana acredita que as mulheres visitam mais pelo vínculo de cuidado muito forte que carregam: “nessa chave de cuidado, que é construída por meio do papel social de gênero, as mulheres são fiéis, cuidadoras e de um amor incondicional”. É uma continuidade e até mesmo uma pressão social que remete ao abandono. Uma mãe jamais quer abandonar seu filho, assim como uma mulher ao seu marido.

Essa fidelidade, muitas vezes, também é reivindicada para elas como símbolo de força. Elas querem provar para si mesmas que podem ser fiéis independentemente da situação.  Mesmo passando, por exemplo, pela revista vexatória – que na visão de Mariana é um “procedimento bastante invasivo, considerado por muitas pessoas como um estupro constitucionalizado”. A pesquisadora enxerga que esse afeto e amor existem, porém se questiona por que só as mulheres são capazes de amar dessa forma. 

Além disso, ela acredita que há outras motivações. As visitantes também acabam por sofrer ameaças para que seja levado o jumbo (kit com materiais para higiene), a comida, para que realizem visitas íntimas e outras formas de serviços. “Cuidar é algo que merece muito respeito, é uma atitude louvável, o problema é quando esse cuidado está exclusivamente nos ombros das mulheres, não é recíproco.”

Tripla jornada como símbolo de força

Mariana acredita que sua pesquisa é, acima de tudo, uma constatação de força. Mães e esposas não só criam uma relação de visitas carcerárias frequentes, mas também acabam por fundar uma entidade e um coletivo organizado. Como relata a pesquisadora, “elas passam a fazer uma maternidade cerceada e julgada ser vista como uma luta por liberdade”. Essas ações nem sempre são percebidas como uma força, muito pelo contrário, são enxergadas como fraqueza. Porém, se configuram como força justamente pela ideia de subversão que trazem.

Com sua dissertação, Mariana pretende trazer a realidade dessas mulheres para dentro da Academia. Também acredita que a bandeira do encarceramento precisa ser incorporada tanto dentro de movimentos feministas como na luta de partidos políticos. “Espero trazer uma situação que, dentro do âmbito da criminologia, precisa ser olhada e ouvida, percebendo a força mesmo em um contexto de destruição e de violência”, conclui.

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