Espaço turístico ajuda na reinserção de trans e travestis

Acesso a capital cultural gera autoestima em grupo com situação de vulnerabilidade

Capital cultural se torna ferramenta para trans e travestis superarem adversidades. [Ilustração: Creative Commons]

Mais de 90% das travestis e mulheres trans brasileiras só encontram trabalho no mercado informal, principalmente na prostituição, apontam dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). “A política pública é uma forma de mudar um pouco essa realidade. O acesso a espaços turísticos consegue inserir esse grupo no mercado de trabalho formal, sem necessariamente pensar numa escolarização formal”, afirma Flavio Daiji Kishigami, pesquisador de mestrado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.

A ideia da dissertação surgiu quando conheceu o Centro de Acolhida Especial Casa Florescer, construída para mulheres travestis e transexuais, que propõe inserir as meninas nos espaços de lazer e turismo do estado de São Paulo, como museus. A observação de campo foi sua metodologia de pesquisa. Ficou um ano como voluntário na Casa Florescer e mais três meses acompanhando passeios e eventos da iniciativa. Além disso, para entender o processo como um todo, entrevistou oito ex-conviventes que conseguiram se inserir no mercado de trabalho.

Fachada do Centro de Acolhida Florescer, criado em 2016 e localizado na Rua Prates, 1.101 – Bom Retiro. [Foto: Heloisa Ballarini/SECOM]

A proposta do Centro de Acolhida é, primeiro, gerar uma autoestima. Alguns relatos de travestis contam que já foram barradas de entrar sozinhas em alguns museus. “Só a possibilidade de assistir a um espetáculo no Theatro Municipal, por exemplo, mexe muito com a autoestima da pessoa. Ela começa a acreditar que consegue fazer muito mais do que simplesmente ficar naquela situação de rua”, explica Kishigami. Uma das entrevistadas chegou a dizer que só se sentiu tratada “como gente” após ser inserida nesses espaços turísticos, normalmente privilegiados.

Convivência no Theatro Municipal gerou um descobrimento sobre a “cultura do dia”. [Foto: Reprodução/Creative Commons]

“Na perspectiva do lazer, os espaços turísticos são locais em que há contato com novas culturas e paisagens, mesmo dentro da própria cidade”, conceitua Edmur Stoppa, docente do programa de pós graduação em Turismo da EACH e orientador da pesquisa. Ele menciona que há uma diferenciação de acesso a tais espaços entre mulheres trans ou travestis, “uma pessoa que passou por transição de gênero vai ter mais oportunidades de se inserir nesses espaços, sem chamar tanta atenção”.

Kishigami afirma que a Academia adota o termo transgênero para a transição de gênero, mas o movimento utiliza dois outros: travestis e transexuais. “As transexuais são as que recebem tratamento, têm acompanhamento psiquiátrico e psicológico e um domínio da linguagem científica”, caracteriza o pesquisador, que diferencia as travestis com o recorte de classe social. “Geralmente são meninas que foram expulsas muito cedo de casa, às vezes com 10 anos, e que já foram para a prostituição com essa idade”, explica. A transformação do corpo de travestis costuma ser feita pelas chamadas bombadeiras, ou seja, travestis mais velhas que injetam silicone industrial. Não há tratamento hormonal nem acompanhamento médico.

As visitas a espaços turísticos também agregam capital social ao proporcionar uma interação com pessoas fora desse meio, o que pode vir a ser uma rede de apoio para indicação de trabalho, mesmo que sejam temporários. “Estes não necessariamente tiram a mulher da prostituição, mas a gente pode falar que é uma ideia de redução de danos, porque ela vai menos vezes para a rua na esquina da noite e corre menos risco”, reflete o pesquisador, que cita a ocorrência de um assassinato, durante um programa, a uma das conviventes da Casa Florescer.

A visibilidade da política pública chamou atenção da chefe de cozinha Paola Carosella, famosa como jurada do programa Masterchef. Ela criou um curso para as mulheres como auxiliar de cozinha e algumas das que moravam na Casa Florescer trabalham com culinária agora. “Hoje você tem travestis trabalhando com cozinha, numa sorveteria da Ben&Jerrys como chefe de equipe, por exemplo. Isso é um início”, afirma Kishigami. 

O seu orientador, Stoppa, enfatiza que, mesmo com benefícios, a política pública também apresenta limites. “Um deles é que se trata de uma política nova e correndo risco de ser descaracterizada, extinta”, afirma, sob a visão de que o lazer e turismo é importante, mas não está dissociado de todo um contexto social. Nesse sentido, o docente acredita que o trabalho de mestrado de Flavio Kishigami também tem a importância de registrar a situação. 

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