Estrutura autoritária do esporte propicia abusos contra crianças e mulheres

Empoderamento de atletas é um caminho para quebrar o silêncio

Entidades estão em movimento para tornar o esporte mais aberto e seguro. (Imagem: Domínio Público/Freepik).

Até uma década atrás falar sobre abuso sexual era um tabu em nossa sociedade e, mais ainda, no meio esportivo. Contudo, os casos sempre estiveram presentes, principalmente nas categorias de base e nas modalidades femininas. Hoje, as entidades esportivas buscam ter aparato para receber as denúncias e acolher as vítimas.

Em 2014, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) assinou um tratado com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes da Câmara dos Deputados para combater o abuso infanto-juvenil nos clubes. No entanto, em audiência pública realizada três anos mais tarde, os parlamentares acusaram a CBF de não cumprir oito dos dez pontos estabelecidos pelo acordo.

Já o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) criou, em 2018, um canal para receber as denúncias dos casos de assédio sexual e moral, com o objetivo de abranger todos que tenham qualquer tipo de envolvimento com a entidade, desde atletas e dirigentes até voluntários e prestadores de serviços. O Código de Ética do Comitê passou a prever punições aos abusadores, que são julgados pelo Conselho de Ética.

Segundo a professora Katia Rubio, da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, especialista em psicologia do esporte, as iniciativas são recentes porque a sociedade está mudando o modo de tratar esse assunto. “Até poucos anos atrás, é claro que as confederações pressionavam os atletas para que se calassem, mas com essa transformação da sociedade, já não convém mais que as entidades se calem, principalmente porque o Comitê Olímpico Brasileiro começou com uma política de visibilidade e acolhimento das vítimas.”

Katia afirma que o principal tabu sobre o tema dentro do esporte vem de sua estrutura autoritária e hierarquizada, em que não há muita clareza entre o papel do técnico, que foi historicamente construído, e os comportamentos abusivos. Trata-se de uma tradição que enxerga essa figura a partir de um ponto de vista militar e com autoridade incontestável: “Quando um atleta questiona a atitude de um treinador, ele pode ser punido com corte de um time ou uma seleção sem critério técnico, podem simplesmente dizer ‘a gente não te quer mais’ e acabou”. Isso também se deve ao fato de não existir transparência das entidades sobre quais são os critérios para a permanência de um atleta na equipe.

Além de autoritária, a estrutura do esporte é patriarcal. Luciana Neder, professora e pentacampeã brasileira de jiu-jitsu, contou que seu primeiro assédio na modalidade ocorreu quando tinha cerca de seis meses de treinamento: “Tinha 15 anos, sofri assédio de um aluno, também iniciante. Estávamos treinando, o puxei para a guarda, ele me segurou no quadril, fez uns barulhos como se estivesse em um ato sexual e me chamou de gostosa. Parei e falei ao professor que não queria mais treinar com ele. O treinador não tomou partido de ninguém e o garoto disse que eu era louca”.

Luciana saiu da academia em que treinava e por pouco não abandonou o jiu-jitsu. Posteriormente, encontrou um professor que estava com uma turma apenas de mulheres e foi o lugar em que permaneceu até a faixa preta. 

A multicampeã Luciana Neder é uma voz ativa do jiu-jitsu contra o machismo no esporte. (Imagem: Arquivo Pessoal).

Neste ano, a lutadora criou uma ouvidoria dentro Federação Sul-Americana de Jiu-Jitsu (SJJSAF) para receber as denúncias dos casos de assédio e abuso sexual. Ela reitera a importância de ouvir e acolher as vítimas para que mulheres permaneçam no esporte. A ouvidoria possui quatro pilares: escuta, acolhimento, aconselhamento e acompanhamento.

Ela citou os dados da pesquisa sobre assédio no tatame realizada pela jornalista da ESPNW, Mayara Munhos, em que 61,6% das entrevistadas afirmaram terem sido vítimas de assédio no ambiente de luta. “Isso considerando que todas as meninas sabem e entendem o que é um assédio. Muitas passam por essa situação e não percebem ou acham normal por ser um local masculinizado”, completa Luciana.

Silêncio e empoderamento

Para a docente da USP, um grande entrave quanto a esses casos está no silêncio de atletas, que não confiam nas instituições e não acreditam que serão ouvidos, pois ao longo da história essas instituições foram coniventes com os abusadores. “A grande questão hoje é empoderar os atletas, as atletas principalmente, para que se sintam seguras e acolhidas. Historicamente as mulheres foram impedidas de participar do esporte e se naturalizou esse assédio moral e sexual”, explica Katia Rubio.

Neder também ressaltou o papel do empoderamento e da união feminina na quebra do silêncio: “Nossa proteção é nossa união. É importante ter representatividade, mulheres dirigentes, gestoras, jornalistas que falem sobre isso, fotógrafas que divulguem. Dar voz a outras mulheres é dar confiança para denunciarem quando precisarem”.

Quanto aos abusos que ocorrem durante iniciação esportiva infantil, Katia Rubio enfatizou a importância do acompanhamento dos pais, pois a mudança de comportamento é o sintoma mais comum quando uma criança passa por essa situação.

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