Pior crise econômica da história da Argentina ressurge, desta vez no cinema

“A Odisseia dos Tontos” tira sarro de bloqueio de contas bancárias que ficou conhecido como corralito

Filme é protagonizado pelo famoso ator argentino Ricardo Darín – Foto: Warner Bros / Reprodução

Os argentinos já decidiram qual produção os representará na disputa pelo Oscar 2020. “A Odisseia dos Tontos” é uma mistura de comédia e aventura que se passa na Buenos Aires de 2001. O cenário por trás do filme é a pior crise econômica da história do país, de 2001, e o fatídico corralito, episódio no qual a população teve seu dinheiro congelado nos bancos por um decreto presidencial. 18 anos após ver sua economia colapsar, a Argentina ainda se debruça sobre um dos momentos mais trágicos de sua história.

O corralito, que pode ser traduzido como “cercadinho”, foi o clímax de uma crise que engoliu a Argentina na virada do milênio. No dia 3 de dezembro de 2001, o então presidente Fernando De la Rúa e seu ministro da economia Domingo Cavallo decretaram o bloqueio bancário de quase 70 bilhões de dólares em depósitos. Do dia para a noite, a população perdeu o acesso às suas economias. Saques em dólares eram proibidos, já em pesos argentinos eram permitidos em pequenas quantidades.

Cartilha das privatizações

“O filme faz uma comédia do assunto porque a realidade é absurda”, comenta o professor Luiz Eduardo Simões de Souza, mestre e doutor em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Inclusive há um documentário chamado ‘Memórias do Saque’ que também aborda este momento de forma interessante”, complementa. Ele explica o episódio do corralito como consequência da adoção das políticas de ajustes e reformas dadas pelo Consenso de Washington. 

O Consenso de Washington foi um conjunto de medidas formuladas, em 1989, por economistas de instituições financeiras situadas na capital dos Estados Unidos, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, e o próprio Departamento do Tesouro norte-americano. Esta agenda econômica de caráter neoliberal se tornou a política oficial do FMI, e havia forte incentivo para que os países latino-americanos em desenvolvimento seguissem a cartilha à risca.

Quem presidia a Argentina à época era o candidato do Partido Justicialista, Carlos Menem. “Mesmo sendo um peronista eleito com discurso populista, no cargo ele adotou a cartilha do Consenso de Washington. A justificativa dada posteriormente foi de que se ele defendesse essa agenda desde o princípio, jamais seria eleito”, comenta Simões.

O pacote de medidas neoliberais adotadas abria a Argentina para o comércio externo e iniciou um processo de “dolarização” da economia nacional. O ministro da economia de Menem era Domingos Cavallo, o mesmo que faria o corralito anos depois. Eles decretaram a “Lei de Conversibilidade” que tornou um peso argentino equivalente a um dólar.

O professor comenta que, do ponto de vista econômico, isso significa que o nível de preços da economia como um todo passa a ser determinado pela quantidade de dólar em reservas que o país tem. Como a Argentina não tinha grandes reservas, a solução tomada foi uma política de privatizações.

Autodestruição 

No curto prazo, a entrada de dólares na economia argentina possibilitou um aumento no poder de compra da população, dando ares de “milagre econômico” às medidas. Porém, com o peso em alta, a indústria argentina não tinha chances de competir com as estrangeiras. Aos poucos, o país destruiu sua capacidade produtiva industrial e se tornou basicamente uma economia primária e exportadora de serviços.   

“É basicamente quebrar os móveis da sua casa e usar como lenha para evitar gastar dinheiro com carvão”

O professor conta que a situação tornou-se uma bola de neve na qual a degradação da situação dos trabalhadores e os índices de desemprego só aumentaram. Se o aumento momentâneo no poder de compra garantiu uma reeleição à Menem, em 1999 ele já não possuía capital político. Neste cenário surge a figura conciliadora de Fernando De la Rúa.

“Ele negociou com o FMI e Banco Mundial uma espécie de ‘cheque especial para a Argentina não quebrar’. O objetivo era evitar a moratória (interrupção no pagamento da dívida externa)”, conta o doutor em História Econômica. De toda forma, as condições extremamente rigorosas impostas pelo FMI impediram qualquer recuperação e o quadro de crise econômica se aprofundou ainda mais.

Nesta altura do jogo, a economia estava cada vez mais colapsada e havia pessimismo sobre uma possível retomada. Como o peso argentino e o dólar ainda tinham o mesmo valor, boa parte da população optou por sacar seus pesos e trocá-los pela moeda estadunidense para assegurar suas finanças. Se havia dúvidas quanto a estabilidade da Argentina, os Estados Unidos e o dólar estavam firmemente consolidados desde o fim da Guerra Fria.

El corralito

Entre setembro e novembro de 2001, a Argentina viu seus cofres serem esvaziados em 22 milhões de dólares por conta dos saques da população. “O nível de reservas ficou tão baixo que seria preciso tomar alguma medida para se conseguir a mínima liquidez do sistema de pagamentos”, comenta Simões. Sob essa justificativa, o ministro Cavallo e o presidente De la Rúa congelaram os depósitos da população.

A reação dos milhares de argentinos que perderam acesso ao próprio dinheiro foi visceral: manifestações em frente aos bancos, depredação de patrimônio público e saques. Um dos casos mais repercutidos foi o do jornalista esportivo Horacio García Blanco. Com diabetes e pressão alta, o corralito impediu que Blanco sacasse sua poupança para viajar para Espanha – onde pretendia realizar uma cirurgia de transplante de rim. Ele chegou a recorrer à Justiça para tentar uma liberação por exceção, mas morreu de insuficiência renal antes de uma decisão.

Blanco não foi a única morte causada pelo caos do corralito. As rebeliões populares escalonaram e o número de mortos chegou a 33. O fim da convulsão social argentina provocada pelo congelamento começaria com 150 mil pessoas reunidas no dia 19 de dezembro de 2001 em frente ao edifício onde o ministro da economia Domingos Cavallo morava. Na madrugada para o dia 20, Cavallo renunciou. A Argentina amanheceu em “estado de sítio” e milhares de argentinos ocuparam as ruas em diversos pontos do país. O episódio histórico do corralito se encerra com o pedido de renúncia de Fernando De la Rúa e sua fuga da Casa Rosada em um helicóptero, enquanto a residência oficial da presidência era cercada por manifestantes.

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