Na pandemia, indígenas enfrentam coronavírus e violências institucionais, aponta grupo de estudos da Faculdade de Direito da USP

Indígena segura Constituição Federal durante ato pela demarcação de terras indígenas em 2019 (Foto: Tiago Miotto / Cimi)

Quando o Brasil registrou o primeiro caso de infecção pelo coronavírus em fevereiro de 2020, em São Paulo, autoridades se preocuparam com os riscos de contaminação nos grandes centros urbanos do País. Isso não impediu que a doença se espalhasse país adentro, somando mais de 8 milhões de casos e 205 mil mortes desde então.

Deste total, mais de 45 mil casos foram registrados entre a população indígena, segundo o relatório Covid-19 e os Povos Indígenas, que usa dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Além de lidar com a questão da pandemia, as populações indígenas enfrentam disputas relacionadas a direitos básicos, como a demarcação de território e o acesso à água e à serviços de saúde. 

Tais desafios são o foco do grupo Direito e Desenvolvimento dos Povos Indígenas (DPI), da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). “O grupo surgiu tanto da constatação que faltava um debate na FDUSP sobre direito dos povos indígenas e comunidades tradicionais, como também de uma urgência em se garantir o bem-estar dessas comunidades no contexto de crise sanitária”, explica Daniel Campos, doutorando em Direito pela USP e coordenador do grupo.

Daniel Campos, um dos coordenadores do DPI, durante aula do grupo (Foto: Acervo pessoal)

Vinculado ao Departamento de Direito Comercial (DCO), o grupo evidencia a mudança de abordagem da temática indígena pelo direito, que deixou de ser restrita à área de direitos humanos e passou a se relacionar com outros campos, como o do direito comercial. Segundo o Professor Carlos Portugal Gouvêa, outro coordenador do DPI, a iniciativa é “fruto do interesse em desmistificar questões e demonstrar que o apoio aos povos indígenas deveria ser de toda a população.”

Durante aula transmitida pelo YouTube, em 28 de agosto, Luiz Eloy Terena, advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e doutor em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ), que também coordena o DPI, discutiu o enfrentamento à pandemia pelos povos indígenas e apresentou outras questões abordadas pelo grupo.

Para Terena, “pensar povos indígenas no enfrentamento a pandemia traz a reflexão da importância dos territórios indígenas para o equilíbrio da humanidade, seja do clima, seja do ponto de vista sanitário.” A situação provocada pelo coronavírus, segundo ele, traz à luz questões como a origem das pandemias e a necessidade de preservação da biodiversidade. 

Campos e Terena ressaltam que além da periculosidade do vírus, particularmente letal para os indígenas (doenças respiratórias ainda são a principal causa de mortalidade infantil nesta população), a maior ameaça para os povos tradicionais durante a pandemia é a violência institucional, que aumentou durante o governo do presidente Jair Bolsonaro.

“Além de reduções desproporcionais de orçamento da Funai (Fundação Nacional do Índio) e de outros órgãos, faltam políticas públicas direcionadas e sobram ataques a vozes dissonantes dentro do governo”, pondera Campos. 

Outro exemplo dessa conduta, segundo Terena, foram os vetos presidenciais ao então Projeto de Lei nº 1.142/2020, que previa um plano emergencial para enfrentamento da pandemia da Covid-19 entre populações indígenas e quilombolas e comunidades tradicionais. Após o Congresso derrubar parte dos vetos, o PL foi sancionado pelo presidente em julho.

Diante da evidência de omissões do poder executivo e a fim de assegurar a adoção do plano emergencial e sua posterior implementação, a sociedade civil, liderada pela APIB recorreu ao Judiciário em ação histórica que marcou a primeira vez em que uma organização indígena acessou o Supremo Tribunal Federal. No julgamento da Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF 709), o STF reconheceu que as falhas do poder público no combate à pandemia entre os povos indígenas resultam em elevados índices de contágio e risco de extermínio de etnias. 

Entre as determinações da decisão estão a retirada de invasores de terras indígenas, conquista considerada fundamental por Terena, uma vez que “no contexto da pandemia a presença de agentes externos representa vetores que levam o vírus às terras indígenas.” Segundo o advogado, a pandemia evidenciou um problema recorrente e resultante da atividade ilegal de madeireiras e do garimpo. 

Outros fatores que aumentam a vulnerabilidade de territórios indígenas à pandemia, segundo os dados da APIB, são a disponibilidade de leitos hospitalares, perfil etário da população e mobilidade territorial. O gráfico abaixo indica as dez terras indígenas mais vulneráveis ao coronavírus no Brasil.

Fonte: APIB

Durante 2020, o DPI seguiu com as pesquisas e monitoramento da situação da população indígena na pandemia e pretende publicar um relatório compartilhado com o Coletivo de Advogados de Direitos Humanos, que atua estrategicamente Tribunal Penal Internacional. 

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