Sorria, a cidade está te vigiando

Foto: Camilo Jimenez

“Existem situações em que o poder público está coletando e usando dados digitais de cidadãos, sem a necessária regulamentação ou prestação de contas”. Essa foi uma das conclusões a que chegou Lúcia Meneghetti, em sua dissertação de mestrado “Dados digitais no espaço público: visibilidade e vigilância distribuída na cidade contemporânea”, pela FAUUSPA pesquisa enfocou situações de captura de dados, com ênfase em espaços públicos e iniciativas de governos brasileiros. O objetivo era compreender como as práticas de visibilidade alimentam sistemas vigilantes em territórios urbanos e podem interferir na noção de espaço e de esfera pública

Em seu estudo, Meneghetti observou que embora a adesão à visibilidade seja voluntária, a adesão à vigilância geralmente não é. A visibilidade se refere ao ver ou ser visto, sem que haja intenções do governo ou de empresas em intervirem. Hoje, a pessoa que naturalmente tem o desejo de se expôr é também capaz de produzir, performar e gerenciar sua própria visibilidade de maneira ativa pelas redes sociais. Isso ocorre pelos mais diversos propósitos, como autopromoção, construção de identidades, reconhecimento ou representatividade. Muitas dessas pessoas não sabem, entretanto, que não estão sendo apenas vistas, mas também vigiadas.

“Ao usarmos redes sociais para postar nossas fotos que muitas vezes contém informações dos lugares por onde passamos, também poderíamos estar contribuindo com a vigilância distribuída”. A pesquisadora explica que é principalmente na internet onde o poder público e empresas privadas capturam dados pessoais, “muitas vezes sem nosso consentimento ou sem sequer nos darmos conta”. Isso coloca os indivíduos em uma posição assimétrica de visibilidade, no qual se é visto mais do que se vê, tornando-se mais difícil de recusar ou identificar a vigilância. 

No “capitalismo de vigilância”, os dados produzidos cotidianamente se tornam alvos prioritários para estratégias de comercialização. Esses dados podem ser monetizados e “funcionam como uma das bases de alimentação de um sistema muito rentável, que, principalmente por meio de marketing digital direcionado, transforma pessoas em consumidores”, explica Meneghetti. Esse sistema socioeconômico e o desenvolvimento de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) tem transformado profundamente não apenas relações pessoais, mas também a própria ideia de cidade. 

A arquiteta entende o espaço urbano atual como sendo “híbrido”. Quando a tecnologia insere informações no “cotidiano físico”, transforma a cidade em um conjunto de materialidades (campo físico) e relações sociais (incluindo as virtuais). Lucia Meneghetti cita a maneira como cada vez mais pessoas passam a utilizarem-se de aplicativos como Waze, Google Maps, ou Uber. “Esse é mais um indício de como as TICs impactam nos espaços e nas práticas cotidianas, neste caso, em especial, na reorganização da mobilidade que está em curso em nossas cidades.”

No meio urbano, as TICs realizam o monitoramento de transportes públicos, túneis para tráfego de veículos, estádios de futebol, lojas, relógios, aspersores de água, abrigos de ônibus, museus ou mesmo praias. Além disso, há exemplos de monitoramento com captura de dados por parte do poder público, como o sistema de reconhecimento facial que foi implantado na Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo para identificar reações do usuário às propagandas exibidas nos trens e permaneceu em funcionamento parcial de abril e agosto de 2018.

Tais iniciativas permitem vislumbrar “cidades do futuro”, com a implantação de uma variedade de sistemas tecnológicos para gestão e planejamento urbanos. A pesquisadora critica o fato de que essa modernização ocorre por meio da supervalorização do campo de conhecimento tecnológico em detrimento de outras áreas no estudo, discussão e gestão dos espaços. Meneghetti acredita que uma “cidade do futuro” não deva ser necessariamente mais vigiada, mas sim “idealizada como aquela em que a segurança seja viável, principalmente por meio da diminuição da segregação socioeconômica e da desigualdade social, e não com ênfase em políticas de vigilância policial”.

Além de possibilitar a “transformação de cidadãos em consumidores”, a pesquisa relatou como as TICs podem contribuir para a segregação social, racial e de gênero. Um aplicativo implementado nos Estados Unidos em 2014 “explicita a mercantilização da cidade”, ao permitir que vagas públicas de estacionamento fossem leiloadas para aqueles que pudessem pagar mais. Em 2015 foi noticiado que um algoritmo do Google classificou pessoas negras como gorilas. No caso do reconhecimento facial no metrô de São Paulo, havia um possível caráter segregador por classificar o usuário como consumidor a partir do gênero e desconsiderar indivíduos que não se vêem como “homem” ou “mulher”.

Segundo a arquiteta, esses exemplos mostram como “a tecnologia não é neutra” e como as origens das práticas de exclusão vem de vieses perpetuados por seus desenvolvedores, “em sua maioria homens, heterossexuais, brancos, e de países considerados mais desenvolvidos”. Há, entretanto, iniciativas que a pesquisa considerou positivas para a população, como é o caso do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), que busca prevenir riscos à saúde pública, por meio do registro de dados realizado por profissionais da área a respeito dos casos médicos em que atuam. 

Independentemente dos vieses ou efeitos positivos e negativos, o fato é que os espaços e as relações humanas estão sendo alteradas pelo emprego das TICs. Lucia Meneghetti reflete que há alterações na esfera pública em curso: conceitos fundamentais para a cidade, os espectros físico e social que permitem que ela seja um espaço de produzir relações e acolher o conflito, estão se separando. “A esfera pública se encolhe, e a cidade vai deixando de ser cidade à medida que se torna excludente e não abriga mais a diversidade”.

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