Modelos experimentais com animais jovens procuram entender melhor patologias que atingem crianças

Pesquisas se focam em transplante hepático e síndrome do intestino curto, problemas que há pouco tempo eram fatais na primeira infância

Foto: Marcos Santos/USP Imagem

Estudos desenvolvidos pela doutora Ana Cristina Tannuri, cirurgiã pediatra do Instituto da Criança e professora da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), estão analisando como animais jovens de pequeno e grande porte ratos e porcos podem simular de uma forma mais exata o que ocorre no fígado e intestino de crianças do que esses mesmos organismos adultos. “Na maioria das pesquisas médicas, o que a gente vê é bastante modelo experimental em animais adultos que simulam adultos, e na verdade a gente sabe que a criança não é um adulto pequeno, ela tem suas especificidades, capacidade regenerativa maior, é tudo diferente”, explica Ana Cristina. “Existem muito poucos modelos experimentais desenvolvidos em animais jovens, e esse é um dos principais focos dos estudos. Assim, conseguimos entender com mais precisão a fisiopatologia dos problemas e a ação das drogas nesse organismos que se assemelham mais aos das crianças.”  

As pesquisas estudam principalmente dois casos: transplante hepático e síndrome do intestino curto em crianças, motivos que antes eram quase uma condenação para seres humanos de 5 quilos que já tinham que se submeter a longas cirurgias (de 10 a 15 horas). Mas, afinal, o que faz uma criança quase recém nascida ter que retirar 80% de seu intestino ou  ter cirrose e precisar de um transplante de fígado?

A Síndrome do Intestino Curto é uma patologia que também atinge adultos, mas é mais provável que aconteça um evento que necessite da ressecção intestinal (método usado para remover a parte doente do intestino) maciça em uma criança que em um adulto. Uma das maiores causas desse problema em prematuros é uma doença chamada ‘enterocolite necrosante’, que faz o intestino inflamar e acaba gerando um necrose, tendo que retirar a maior parte do órgão. Outro caso é o ‘volvo intestinal’, que, numa explicação simples, consiste numa torção de uma alça do intestino ao redor de vasos sanguíneos, o que resulta no fechamento desses vasos e na necrose de todo o resto do intestino que não consegue receber sangue. Esses dois problemas são os que mais dão origem ao intestino curto em crianças.

Há uns 10 anos, crianças com essa síndrome iam quase 100% a óbito. O transplante de intestino não é uma opção boa a longo prazo, pois gera muita rejeição e infecção. Então, cada vez mais é consenso mundial tentar fazer com que o pedaço de intestino que sobrou se readapte, sendo capaz de suprir todas as necessidades do indivíduo, como um intestino completo. Para isso, é preciso internação durante uns 2, 3 anos, com a criança recebendo nutrição parenteral (através de catéter na veia). A maioria dos pacientes acabava morrendo nesse período, ou por falta de veias hábeis para o catéter ou por infecções adquiridas nesse intervalo. Hoje em dia, com a melhoria da medicina e dos hospitais, o índice de sobrevivência é maior, mas, pensando em favorecer ainda mais essa condição, foi criada essa linha de pesquisa que estuda o intestino curto em animais jovens. Através da produção do intestino curto nesses animais, é possível saber qual a parte do intestino consegue se adaptar melhor, qual a droga mais adequada para usar, quais procedimentos são efetivos em animais adultos mas não em mais novos, entre outros fatores. Atualmente, a pesquisadora e sua equipe estão avaliando a ação da insulina no intestino curto, para saber se adicionando o hormônio existe algum efeito anabólico que melhore a adaptação intestinal, que acelere esse processo. “Ao invés de durar 2 ou 3 anos, se conseguirmos fazer com que demore um ano, para a criança já vai fazer uma grande diferença”.

Transplante de fígado pediátrico e seus desafios

Em 1989 foi realizado o primeiro transplante hepático em criança no Brasil. Algo tão recente na medicina ainda gera uma série de questões sobre o resultado dessa operação a longo prazo tempo de duração do fígado transplantado, efeitos colaterais no paciente. Por ser um tema atual e sem muitas respostas, gera uma gama de opções para pesquisas.

A cirrose é uma das principais causas da necessidade de transplante de fígado, e, em crianças, essa doença se origina através de outra doença chamada ‘atresia das vias biliares’, que causa, já nas duas, três primeiras semanas de vida, amarelamento da esclerótica do olho e embranquecimento das fezes. Esses sintomas são resultados da bile (que é produzida no fígado) não escoar para o intestino normalmente, devido a um problema nas vias biliares responsáveis por essa condução, que inflamam e acabam fechando. A bile acumulada no fígado gera a cirrose. Em menos de um ano, a criança está cirrótica e precisa urgentemente de um transplante.

Mas, há um problema nessas operações. Quando o transplante é feito, retirando um pedaço do fígado de um doador adulto (que pode estar vivo ou não), por menor que seja, às vezes é grande para a criança. O normal é que o fígado deva pesar de 0,8% a 2% do peso total do corpo, mas para realizar um transplante numa criança de 5 quilos, por exemplo, quase sempre o pedaço de fígado transplantado é grande demais. Não se sabe ao certo os efeitos a longo prazo disso, e o estudo experimental desenvolvido procura reproduzir esse transplante em porcos jovens para estudar os efeitos. Também é feito obstrução dos canais biliares em ratos jovens, simulando a “atresia das vias biliares”, para atestar as consequências disso no fígado e a repercussão em outros órgãos.

Resultados e perspectivas

Apesar de promissores, a doutora Ana Cristina demonstra cautela ao falar sobre os resultados das pesquisas: “Um dos focos maiores do estudo é entender melhor o que acontece, para depois desenvolver soluções práticas. Mesmo a transposição não sendo direta, você já sabendo que uma droga ajuda a regenerar e outra não, já é de grande auxílio”, explica. “Primeiro a gente trabalha para compreender perfeitamente o que acontece para depois pensar em transpor os resultados da pesquisa na clínica. O estudo experimental te dá mais armas, mas ele sozinho nunca é capaz de dar argumentos suficientes para você começar aplicar isso na prática”.

No entanto, ela conclui com expectativas: “O objetivo principal do que a gente faz em pesquisa é melhorar a qualidade de vida das pessoas. Nós, que somos médicos, nosso principal objetivo é aumentar a sobrevida, e, no meu caso, garantir que as crianças que vêm para cá saiam melhores.”

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