Diálogo entre Richard Morse e Antonio Candido ajuda a compreender a metropolização de São Paulo

Artigo faz análise comparativa entre as perspectivas de Morse e Candido, explicando o desenvolvimento de São Paulo pela ótica literária

Avenida Paulista, um dos mais importantes centros culturais e financeiros da capital paulista. Foto: Daniel Miyazato.

Daniel Miyazato | danielmiyazato@gmail.com

Em A formação da metrópole paulista: um diálogo entre Richard Morse e Antonio Candido, do número 66 da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, parte-se da obra de Richard Morse, De comunidade a metrópole: biografia de São Paulo e do ensaio de Antonio Candido, A literatura na evolução de uma comunidade, os dois publicados em 1954, para traçar um panorama do desenvolvimento urbano da capital paulista e entender como uma cidade interiorana começou, já no início do século 19, a se transformar no que é hoje: uma das maiores metrópoles dos mundo.

A autora do artigo, Ana Castro, destaca a perspectiva relativamente pouco ortodoxa de Morse, quem, segundo a pesquisadora, parte de uma tese do escritor e ensaísta brasileiro Mário de Andrade, segundo a qual “os movimentos espirituais precedem as mudanças de ordem social”. De acordo com Castro, o livro do brasilianista trabalha muito com a ideia de ethos paulistano, o conjunto de costumes comportamentais e culturais de uma determinada época. “São Paulo tinha um ethos ibérico-católico que vai caminhando ao longo do século 20 para um ethos moderno. Nos anos 1950, quando Morse faz seu trabalho, São Paulo é uma metrópole capitalista, industrializada, moderna, de edifício altos.” Para entender essas transformações, a professora da FAU explica que Morse procurou reconstruir a história da cidade, “tendo a percepção de que não bastava a explicação econômica, que via o café como a grande alavanca do desenvolvimento da cidade, afastando-se de uma perspectiva marxista, e colocando a cultura no centro da sua explicação, não como reflexo da economia. Acho que o ponto mais interessante é isso, colocar a cultura como fundamental, não como reflexo.”

Da esquerda para a direita, capas das edições de 1954, 1958 e 1970 de “A formação histórica de São Paulo: de comunidade à metrópole”. Fonte: reprodução.

Como consta no artigo da professora da FAU, na leitura de Candido e Morse, a fundação da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (hoje FDUSP) teve papel decisivo na metropolização paulistana, na medida em que conferiu à então cidadezinha provinciana um intercâmbio cultural maior com o resto do império e permitiu a constituição de uma elite intelectual. “Aquela vida mais modorrenta, que só estava acontecendo nas casas, nos sobrados, onde não havia muita vida social, foi mudando. Os estudantes de direito demandavam uma vida social, então começam a abrir bares, boliches, eles fazem piqueniques. Tudo isso começa a trazer elementos mais cosmopolitas, digamos assim.”

Ana Castro lembra que Morse enfatiza o caráter interpretativo do próprio estudo. “É um esquema de interpretação, isso é importante destacar, não é uma história stricto sensu. O Morse utiliza documentos, mas ele faz uma interpretação dessa época.” Para Morse, assim como para Candido, pelos movimentos literários, pode-se entender a trajetória urbana de São Paulo. “Morse afirma que tantos os momentos do Romantismo como o do Modernismo são momentos de transformação do ethos paulista, que na origem é ibero- católico e que vai se transformando em um ethos moderno, mas sem deixar para trás a percepção de mundo ibero-católica e essa é a particularidade de São Paulo na visão dele.”

Mapa da cidade de São Paulo de 1810, de autoria de Rufino José Felizardo e Costa. O original se encontra no Museu Paulista – USP. Imagem: reprodução.

“O Morse utiliza, por exemplo, as cartas do Álvares de Azevedo para o pai, para mostrar relatos de como a cidade era provinciana”, ilustra Castro. Pode-se constatar, pelo mapa de 1810, que a cidade compreende pouco mais que o triângulo histórico. Para a professora, a chamada explosão urbana é efetiva no final do século 19. “Mas a maioria das explicações da evolução urbana de São Paulo colocam como motivos para sua transformação a vinda do café, da ferrovia, dos imigrantes. Morse não ignora esses elementos, no entanto, ele chama atenção para o início do século, dizendo que lá houve pequenas mudanças que valem a pena serem estudadas.”

Planta geral da cidade de São Paulo de 1897. Original se encontra no Museu Paulista -USP. Imagem: reprodução.

Para a pesquisadora, a influência da obra de Candido no trabalho de Morse é muito provável. “Morse, um americano no final dos seus 20 anos, vivendo em São Paulo, tinha feito um mestrado sobre a cidade. Ele vem com alguma compreensão. Mas encontrar com o Antonio Candido e seu grupo, acredito que isso deva ter sido realmente incrível, porque ele teve acesso a discussões importantes e deve ter aprendido muito. Acho que é inevitável ele ter absorvido as ideias do Candido sobre esses dois momentos, Romantismo e Modernismo.”

No entanto, para o próprio Candido, isso foi mais uma coincidência, como conta Castro: “Quando entrevistei o Antonio Candido, ele negou, disse que todo mundo que estudou literatura em São Paulo vai falar desses dois momentos. Ele falou para mim, ‘não sou eu, nem o Morse. Todo mundo.’” Mas a professora ressalta que “ele, Antonio Candido, é quem estava historicizando o Modernismo. Candido escreve na virada dos anos 1940 e 1950, o Modernismo não tinha entrado para a história de fato.”

Quanto ao paralelo com a arquitetura, a professora percebe um alinhamento de perspectivas. Se os momentos do Romantismo e do Modernismo são exaltados por Candido e Morse e as expressões literárias intermediárias, como o parnasianismo, são duramente criticadas, na arquitetura acontece algo semelhante. Ana Castro explica que para a maioria dos críticos “a arquitetura colonial é importante, traduz o que somos. Arquitetura moderna brasileira também, realizou a síntese da tradição com a modernidade. Niemeyer é local e universal. Mas a arquitetura da virada do século 19 para o 20, chamada eclética, do Teatro Municipal, do Mercado Municipal, é desprezada pelos arquitetos modernos, que dizem ser uma arquitetura ‘importada’.”

Desde a década de 1950, São Paulo se urbanizou intensamente, se tornando uma das metrópoles mais importantes do mundo, em termos econômicos e culturais. No entanto, este processo se deu de uma maneira quase irrefletida. “Temos um plano de avenidas em 1930 e vamos ter um plano diretor em 1970, que não é aplicado, depois teremos outro nos anos 2000. Há uma omissão do Estado, no sentido de deixar nas mãos da iniciativa privada a forma como a cidade vai crescendo”, pondera Castro. “São Paulo exacerbou o ethos moderno enquanto o Morse defendia que se devia preservar o ethos ibérico-católico. Porque o ethos só moderno é assim, modernizar, industrializar, mas perder a possibilidade de manter as relações comunitárias, algo que Morse destacava naquela São Paulo dos anos 1950”.

“Acho que gestão do Haddad, com os mil problemas que ela pode ter tido, de algum modo quis por um inflexão nesse caminho único de modernização, não porque deixou para trás as grandes obras, vide o Arco do Futuro, mas tentou amenizar o modelo rodoviarista, tentou dar uma chance para as ciclovias. Por exemplo, teve aquele projeto piloto de por decks de madeira com cadeiras de praia no centro, dando às pessoas um lugar para ficarem mais tranquilas. Enfim, pincelaram algumas mudanças, o problema é que não tem continuidade”, lamenta a professora. “Agora voltamos para o modelo ‘acelera’, lema dos anos 30.”

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