Identidade e conjugalidade de mulheres lésbicas é tema de doutorado na USP

Imagem: Reprodução/Pinterest

Com críticas em relação à sociedade machista e homofóbica em que vive, Fabiana Esteca decidiu estudar e compreender o significado da imposição heteronormativa na constituição subjetiva de mulheres que se revelaram lésbicas, além das influências que existiram na qualidade das relações conjugais delas. Para cumprir seu objetivo, a pesquisadora entrevistou cinco mulheres separadas: todas moradoras da cidade de São Paulo, com idades variando entre 31 e 58 anos, de classe média ou média alta. Os depoimentos e as discussões sobre o tema deram origem à tese de doutorado Impactos da heteronormatividade sobre a conjugalidade lésbica: uma análise psicanalítica a partir do relato de mulheres separadas, defendida em 2016 ao Instituto de Psicologia da USP.

O impacto na constituição do eu

Como explica Fabiana, a heteronormatividade é um movimento de pressão social que coloca a heterossexualidade como a única forma possível de vivência sexual, rebaixando e renegando todas as outras expressões da sexualidade. “É essa normatização pesada que acontece socialmente e que força pessoas não heterossexuais a se manterem numa certa marginalidade”, aponta. A heteronormatividade está presente não só na sociedade em geral, como também nos núcleos familiares, impactando os sujeitos.

Em sua pesquisa, Fabiana utilizou o conceito da psicanálise vincular denominado transmissão psíquica geracional para que pudesse estudar, nas famílias das entrevistadas, conteúdos passados consciente e inconscientemente através das gerações. Depois de analisar a fundo a história familiar, bem como os laços afetivos entre seus membros, a pesquisadora propôs um novo termo para esse legado cultural que foi recebido: a transmissão da vergonha – que se deu pela família e em relação à sexualidade dessas mulheres.

Em todos os casos, nas famílias das entrevistadas, havia algum parente homossexual que foi rejeitado e discriminado, o que resultou em um assunto “tabu”. Desse modo, as mulheres contaram que passaram por um processo bastante difícil de desconstrução do que escutaram ao longo de suas vidas, ou seja, de que a homossexualidade seria um problema. “A descoberta da sexualidade foi um processo muito solitário para elas”, diz Fabiana.

De acordo com a pesquisadora, a heteronormatividade tem consequências muito negativas para a constituição subjetiva das mulheres lésbicas e pode desencadear problemas de auto estima, culpa, ansiedade e depressão.  “Como ecoam, na constituição do eu dessas mulheres, a hostilidade e violência recebidas, além da carga negativa em relação à homossexualidade?”, questiona. “É um conflito muito grande consigo mesmas e uma briga contra seus desejos.”

Esses seriam os principais impactos da heteronormatividade, mas Fabiana pondera que não necessariamente todas as mulheres passarão por isso, pois o espaço familiar tem uma interferência bastante significativa. Segundo ela, mesmo que o preconceito exista socialmente, a família poderia ser um local em que a pessoa encontraria suporte para enfrentá-lo. Porém, na maioria dos casos, e inclusive com quatro das entrevistadas, a revelação da homossexualidade não foi bem recebida.

A família e a revelação

As entrevistadas contaram que, quando revelaram a homossexualidade para suas famílias, as reações mais marcantes para elas foram as de suas mães. Fabiana exemplifica com dois casos de violência relatados: em um deles, a mãe da participante mais velha (58 anos) agrediu-a fisicamente e ficou dez anos sem falar com a filha, até sua morte; no outro, a mãe de uma das entrevistadas impediu-a de continuar usando as roupas que dividiam – porque as “sujaria” – e, também, proibiu a filha de ter contato com a irmã mais nova.  “Ela ficou muito chateada com isso, não aguentou e chegou a desmentir: fingiu, por um tempo, que namorou alguns de seus amigos”, lembra Fabiana.

Segundo a pesquisadora, as reações das mães foram as mais intensas nas famílias e as mais comentadas pelas entrevistadas, principalmente por a postura discriminatória não ser esperada, já que antes elas tinham relações boas e próximas com as filhas. “Diante dessas reações, tive a impressão de que os pais adotaram uma postura compensatória em relação às fortes agressões das mães, talvez para amenizar isso”, notou Fabiana. Ela também acredita que, pela carga narcísica das mães ser maior em relação às filhas do que dos pais em relação às mesmas, possivelmente, eles reajam pior diante da revelação da homossexualidade dos filhos.

Quanto ao restante da família, reações negativas tinham menor impacto emocional sobre as entrevistadas. Parentes que não respeitavam a sexualidade delas foram excluídos de seus círculos sociais, e muitas se ligaram a pessoas homossexuais dentro da família. “Havia uma aproximação a essas figuras, uma admiração e uma cumplicididade também”, Fabiana explica. Além disso, todas elas buscaram espaços de pertencimento fora do núcleo familiar, formando “famílias de escolha”. Como a pesquisa foi feita em São Paulo, a maioria delas tinha saído da cidade de origem, mudando-se para uma metrópole para, talvez, poder viver com maior liberdade.

Mesmo diante da postura da família, todas as entrevistadas disseram que foi positivo, na vida delas, o momento em que deixaram de se esconder e assumiram a homossexualidade, pois acreditam que algumas questões ficaram mais fáceis de serem enfrentadas. “Se soubesse que teria sido tão melhor, eu teria me revelado antes”, disse uma delas à pesquisadora.

As relações conjugais

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Em uma sociedade heteronormativa e homofóbica, as relações conjugais entre mulheres são ainda pautadas pelo preconceito: uma especificidade que casais heterossexuais não vivenciam. Em público, muitas não andam de mãos dadas e têm receio de trocar carinhos pelo medo de serem alvos de intolerância e violência na rua. Também enfrentam situações de preconceito dentro de suas próprias famílias e nas de suas namoradas e esposas – o que foi relatado por toda as entrevistadas. Uma delas conta, por exemplo, que se incomodava bastante com o fato de a família da parceira fingir que elas eram apenas amigas, sentindo isso como um desrespeito muito grande.

Foi consenso entre as entrevistadas que a interferência do preconceito na relação depende da postura que o casal tem diante dos fatores adversos, além da cumplicidade que estabelece. “Quando as duas estão bem, acabam se unindo contra o preconceito e se fortalecem para poder enfrentá-lo”, Fabiana explica. Segundo a pesquisadora, há diferentes formas de se reagir a ele, o que demanda diálogo para que o superem da melhor forma possível, sem desgastes desnecessários para elas.

Na maioria das relações das entrevistadas, o que interferiu negativamente foi a disparidade intra casal em relação à aceitação da própria homossexualidade. Algumas mulheres entram em relações conjugais lésbicas sob um processo mais amadurecido de apropriação dessa identidade, e outras ainda sentem um constrangimento decorrente das imposições heteronormativas.

Fabiana explica que é um preconceito internalizado: a percepção de si é deturpada, fazendo com que essas mulheres acreditem que estão fora de um padrão e sintam-se de menos valor. “Então, quanto mais essa mulher conseguir elaborar o luto pela heterossexualidade idealizada, melhor ela vai se relacionar”, diz. Quando o casal não conseguia conversar sobre isso, a diferença de aceitação foi motivo de conflitos e mal entendidos, sendo confundida com falta de amor ou de coragem para assumir a relação. “Precisaria ter bastante diálogo para que essa disparidade não desgastasse a relação.”

Além disso, outro fator pontuado pelas entrevistadas foi quanto à dificuldade em viver plenamente suas sexualidades. Fabiana fez uma análise interseccional de gênero e orientação sexual para concluir que tanto o tabu do prazer da mulher quanto o tabu da homossexualidade interferiam negativamente e podiam levar à repressão da libido.  Uma das entrevistadas contou à pesquisadora, por exemplo, que sentia uma auto cobrança muito grande para atingir o prazer sexual, o que atrapalhava a espontaneidade das relações. Segundo Fabiana, há um impedimento maior de vivência da sexualidade em casais de mulheres do que em casais de homens, os quais já têm, social e historicamente, maior liberdade sexual.

Nas relações conjugais das mulheres entrevistadas, Fabiana também percebeu uma reprodução do modelo patriarcal em que, aos poucos, foi se instalando um dinâmica de complementaridade não consensual: uma ficava responsável pelas tarefas domésticas e a outra ocupava o papel socialmente entendido como masculino, de provedor financeiro que trabalha fora de casa. “Esperava uma diferença nesse aspecto e vi algo muito semelhante aos casais heterossexuais tradicionais”, diz. “No sentido de que parecia haver uma figura que se apropriava do lugar de sucesso profissional, enquanto a outra acabava se voltando mais para as atividades domésticas e se sentindo desvalorizada por isso.

A relação mais ajustada, de acordo com Fabiana, era a do casal em que as duas estavam bem inseridas e realizadas profissionalmente. A pesquisadora explica que a reprodução do modelo patriarcal acaba ocorrendo de maneira inconsciente, por ele estar muito arraigado na sociedade. “Uma herança muito forte da família, até porque as mulheres da pesquisa vinham de famílias bastante marcadas pelo machismo”, lembra. “Essas famílias, claro, estão dentro da sociedade que reproduz isso o tempo todo.”

Para Fabiana, entretanto, está acontecendo uma transição, em que um novo paradigma precisa ser construído. A reprodução do modelo patriarcal foi notada e questionada pelas entrevistadas, tendo sido motivo de conflitos nas relações. “Percebeu-se que ele não agradava e que não trazia satisfação mútua”, diz. “Precisa-se de um processo de adaptação, mas isso não é da noite para o dia”. Apesar disso, de acordo com a pesquisadora, há uma diferença geracional muito grande e, hoje, os casais de mulheres não são tão invisibilizados como antigamente. “Aos poucos, está se ganhando espaço e está se falando mais sobre isso”, diz. “Então, acho que a perspectiva é positiva, apesar de ainda faltar muito a ser conquistado.”

 

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