Primeira penitenciária feminina do Brasil era administrada pela Igreja Católica

Sob a gestão de freiras, espaços reproduziam lógica do trabalho doméstico e reforçavam papéis sociais entre mulheres e homens

Internas com uniforme da penitenciária de Tremembé, anos 1960. Foto: Reprodução

No início da década de 1940, em meio ao processo de formação da metrópole paulistana, a cidade de São Paulo sediou a primeira penitenciária específica para mulheres no país. Por trás da institucionalização da punição feminina pelo Estado brasileiro, há um fato curioso: o estabelecimento permaneceu, por mais de três décadas, sob a gestão de um grupo religioso, a Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor.

Em plena vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas, com ampla concentração de poderes nas mãos do poder Executivo, qual seria a articulação de interesses por trás dessa união? O que levava as religiosas a quererem assumir uma instituição punitiva e o que levava o Estado a transferir esse controle?

Essas foram as questões centrais que a historiadora Angela Teixeira Artur se dedicou a estudar, de modo a reconstruir um pequeno capítulo da história que colaborou para o cenário atual do encarceramento de internas no país. As respostas não foram isoladas. De acordo com a pesquisadora, uma articulação de interesses foi pano de fundo para a administração das irmãs do Bom Pastor.

Sediada em uma casa, a primeira penitenciária feminina do país previa, em seu decreto de criação, que a pena das internas deveria ser executada com trabalho e instrução domésticos. A essa determinação, Artur chamou de “domesticação do regime de execução penal”.

Internas trabalhando no presídio. Foto: Reprodução

“É uma insistência de que a mulher era um ser doméstico, do lar, e que, se ela cometeu algum desvio, foi porque não estava nesse lugar”, comenta Artur. “Dessa forma, a punição sobre ela deveria ser treinada de modo a voltar para o lugar de onde ela nunca deveria ter saído: uma casa, realizando as atividades domésticas.”

Ao ingressar nos presídios, a profissão das internas já estava pré-definida: se não tinham uma ocupação, as mulheres eram chamadas, automaticamente, de domésticas, buscando reforçar os papéis sociais, em especial no que dizia respeito à manutenção da mulher no espaço privado.

“A institucionalização reforça, mantém e, pior, torna mais rígida, contundente, e inflexível uma mudança de papéis sociais, que a é a domesticação das mulheres, a manutenção delas no local de onde elas não deveriam ter saído segundo essa lógica”, defende Artur.

A pesquisa da historiadora compôs sua tese de doutorado nomeada Práticas do encarceramento feminino: presas, presídios e freiras, defendida recentemente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Articulação de interesses

Instituída pelo Código Penal de 1940, a primeira penitenciária para mulheres contava com apenas sete internas. “Isso mostra que não é a quantidade de pessoas presas que determina se uma ação política vai caminhar em uma direção ou em outra, mas, sim, os interesses em jogo”, argumenta a historiadora.

Ela pontua que, durante o século 20, o Estado brasileiro operava uma grande tentativa de institucionalizar as relações humanas, em especial no que dizia respeito às camadas populares. A formação de um estabelecimento penitenciário específico para a população feminina foi exemplo disso.

“O Estado, diante da discussão de modernização do país, de institucionalização das práticas, não tem, a pronta entrega, um grupo de profissionais com experiência e que possa atender a essa demanda rapidamente”, explica Angela Artur. “As freiras se colocam como quem pode fazer isso. Há essa articulação de interesses”, completa.

Nessa intrínseca relação entre a origem das penitenciárias modernas e a questão religiosa — como caracteriza Artur —, os interesses por parte das irmãs do Bom Pastor não eram poucos. Para além do que pode parecer, o desejo das religiosas de converter as pessoas ao cristianismo praticante não era o único presente. Questões econômicas e políticas também foram essenciais.

Irmãs do Bom Pastor nas escadarias do presídio de mulheres. Foto: Reprodução

“É uma ampliação de poderes e de status”, explica a pesquisadora. “A possibilidade de ter controle de uma instituição empodera a Congregação no sentido da influência, da diferenciação com outras congregações, de ter mais voz dentro da própria Igreja e poder se posicionar frente a ordens que vêm de cima.”

Outro interesse desse “empoderamento” da Congregação é que, no momento em que se estabelece um contrato com o Estado, as irmãs são remuneradas por isso e  dispõem de uma renda fixa mensal, que permite planejamentos de organização do grupo religioso.

Em meio a uma instituição com forte presença masculina, como a católica, esse jogo de interesses também busca fortalecer as freiras. “Isso as empodera, porque elas têm um lugar definido dentro de uma instituição junto ao Estado”, diz a pesquisadora.

Posto à margem

Angela Artur tem se dedicado a estudar a institucionalização da punição de mulheres desde 2007. O trabalho da historiadora em sua dissertação de mestrado, por exemplo, deu início a essa investigação estudando o momento em que surgiram os primeiros presídios femininos. Além de disponível online, a pesquisa virou o livro Institucionalizando a punição: as origens do Presídio de Mulheres do Estado de São Paulo, lançado pela editora Humanitas.

Interna em uniforme utilizado no estabelecimento penitenciário. Foto: Reprodução

O estudo, no entanto, não foi fácil. Ao falar de seus passos iniciais, a pesquisadora conta que a motivação principal era uma dúvida: “Por que mulheres que cometiam crimes ou atos de violência não eram alvo de informação?”. Essa escassez de uma bibliografia prévia sobre o assunto, em especial no Brasil, foi uma das dificuldades iniciais que a historiadora encontrou.

A isso se somou a resistência com a qual a Artur se deparou para acessar os arquivos das penitenciárias. Por anos, a administração afirmou que as fontes não existiam mais, até que, somente em 2014, Artur conseguiu autorização para acessar os arquivos internos e encontrou grande parte do material que solicitava acesso — com exceção das folhas que haviam se deteriorado com o passar dos anos.

A historiadora também priorizou a investigação nos arquivos da própria Congregação do Bom Pastor e chegou, inclusive, a pesquisar nos arquivos da Maison Mère, casa central do grupo religioso localizada na França.

Para além de todas as considerações alcançadas pela pesquisadora em seu trabalho, ela ressalta a constatação de que o assunto foi posto à margem da história brasileira: “Ao mesmo tempo em que o trabalho traz essa constatação incômoda de que a historiografia ignorou uma certa camada da sociedade, já que a população carcerária não foi um sujeito histórico privilegiado nas pesquisas de historiadores, você percebe que tem uma série de sujeitos que não foram mapeados.”

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