Desenho do espaço urbano demonstra a pluralidade e os conflitos da cidade

Pesquisador discute como a compreensão da linguagem do desenho permite elaborar uma crítica aos modelos de ocupação do espaço urbano.

Visão aérea da zona Sul de São Paulo: casas térreas, grandes prédios e a mata ao fundo dão noção da diversidade de São Paulo. Foto: Juvenal Pereira

O desenho está presente em quase todas as áreas do conhecimento humano. Seja na representação cartográfica da Geografia, na construção de formas da Geometria ou na Arquitetura, ele é fundamental para o homem compreender sua existência no mundo. A partir do conceito matemático, o desenho pode ser tido como “o ponto colocado em movimento, que gera linha, que gera forma”. Assim “todo ponto colocado em movimento produz de certa maneira produz uma ideia de desenho”. É a partir dessa abordagem ampla que o professor, desenhista e educador do MAC-USP Evandro Nicolau aborda a concepção de desenho em sua pesquisa de doutorado Desenhos da paisagem: percepção, memória e imaginação.

Tal sentido amplo de desenho contraria a percepção mais conservadora de que o bom desenho seria aquele feito à mão livre, representando a realidade. Para o pesquisador é importante ir além de tal ideia e entender o desenho “como uma linguagem, como uma forma de comunicação. E como tal ele tem uma presença então na sociedade e nas suas relações políticas.”

Considerando que todo corpo em movimento constrói um desenho, para Nicolau o espaço social só pode ser tido como um espaço de representação, ou seja, um lugar em que o cidadão reconhece ou constrói a sua existência na relação com a paisagem. Por isso, afirma: “Quanto mais a gente fica restrita a uma percepção do desenho artístico que tem esse pé nas Belas Artes, mais a gente restringe a nossa capacidade de perceber esse mundo desenhado e percebê-lo de uma forma mais ampla.”

Desse modo, perceber a realidade social como desenho permite que o indivíduo se emancipe de modelos que podem aprisioná-lo, como os modelos industriais, do automóvel ou o do urbanismo modernista. Tendo consciência de que tais modelos são desenhos da paisagem, o sujeito pode criticá-los, compreendê-los em maior profundidade, atingindo assim um grau de emancipação político-social.

A visão aérea da região do Itaim Paulista permite observar o contraste entre florestas, zona rural e região metropolitana de parte da cidade de São Paulo. Foto: Google Earth

Nicolau explica que a negação da autonomia de pensamento possibilitada pelo desenho é um projeto político antigo no Brasil. No século XIX fazia-se uma distinção entre artes e ofícios, considerando os ofícios como uma atividade fundamental, que deve ser difundida entre todas as parcelas da população para que elas se tornem produtivas, e as artes como uma atividade de segunda ordem, que deve ser restrita às burguesias letradas e à convivência de salão.

De certa maneira, tal projeto político-educacional permanece ainda hoje nas escolas, em que Artes é considerada uma disciplina de segundo plano, pois não produziria conhecimento. Para o pesquisador tal concepção é absolutamente equivocada: “Na Monalisa, por exemplo, há uma dimensão científica, de necessidade da ciência de compreender a realidade para poder descobrir as coisas. Na pesquisa que os renascentistas estavam fazendo entra uma série de coisas, entra câmera escura, os aparelhos de observação… Tudo isso vai dar origem ao Hubble, que é ciência hoje. Então a habilidade do Leonardo da Vinci de desenhar, era uma habilidade de fazer ciência.”

Quando a educação nas linguagens artísticas é tida ou como a apreciação do “bom desenho”, como o dos renascentistas, ou ainda restrita às camadas mais ricas da população, limita-se a capacidade de criatividade e produção intelectual do povo. Para compreender tal problema, Nicolau remete a uma passagem de Rancière em que o pensador francês afirma que “‘ao escravo é dada a possibilidade de compreender a linguagem, mas não de produzir a linguagem’. Mas ele produz linguagem sim, o escravo produz a sua linguagem. Entretanto, esse espaço não é vinculado aos espaços sociais convencionais.” Nesse sentido, a ideia ampla de Nicolau a respeito do desenho pretende compreender como as diversas camadas da população produzem linguagem por meio de sua relação com o espaço urbano.

Antropogeografia e o desenho do homem no espaço urbano 

Nicolau explica que “a palavra paisagem vem de país, país-agem, landscape, que é um recorte de uma porção de terra e um conjunto de uma representação simbólica que está presente ali”. A paisagem como uma construção social, ideológica, é a primeira representação de desenho dos moradores de determinada região. Tal relação entre a paisagem e a formação dos indivíduos é o que pode ser compreendida como antropogeografia.

A antropogeografia determina representações fundamentais do indivíduo. Quando, por exemplo, vê-se a foto da Terra tirada no espaço, não se vêem os desenhos dos traços elaborados pelos europeus para dividir a África entre países em que muitas vezes convivem tribos inimigas. Tal divisão pode ser tida como um desenho humano complexo, “uma geografia humana que não é percebida como conceito de desenho, como uma coisa que possui uma linguagem”, explica Nicolau. Perceber divisões como essa como um desenho humano da paisagem devolve a complexidade à problemática da ocupação do espaço, abrindo aos indivíduos a possibilidade de criticá-la.

As linhas que dividem a África em países são um desenho humano, arbitrário, que se naturalizou no modo de representar o continente (Foto: Google Earth).

Nesse sentido, Nicolau entende o GoogleMaps como uma rica ferramenta de desenho da paisagem urbana. Por meio dele pode-se perceber o quanto a cidade é múltipla possuindo, por exemplo, não só a malha urbana com grande densidade populacional ao centro, mas também floresta e áreas de manancial. Tal diversidade expressa pelo desenho da cidade vai na contramão da “tendência de se homogeneizar a cultura, que é o que estamos vivendo hoje”.

A diversidade da cidade aparece nos conflitos sociais expressos na geografia. Evandro Nicolau explica que “o ser humano é cultural, responde a identidades coletivas. E essa resposta inclusive facilita na confiança entre um e outro”. Quando, entretanto, o universo comum de um e de outro indivíduo tem desenhos diferentes, como no caso da Cidade Tiradentes e dos Jardins, por exemplo, pode-se causar um ruído na troca de informações, pois os indivíduos não se vêem como partes de um universo comum. No caso da pessoa que mora na periferia, entretanto, a situação é um pouco diferente, pois, segundo o pesquisador, devido ao fato de muitas vezes ela trabalhar no Centro e ter maior trânsito na cidade, ela “tem uma percepção muito mais ampla da cidade do que quem não mora na periferia.”

A violência em São Paulo manifesta-se de forma muito mais agressiva na periferia, onde, como explica Nicolau, “os equipamentos culturais são ínfimos e a educação de um modo geral é praticamente negada”. Esse universo simbólico periférico, entretanto, se faz presente no centro urbano por meio da pichação, que é fortemente combatida por ser considerada como uma expressão de arte marginal. Para Nicolau, “a ideia de submeter o outro por meio da cultura é uma violência simbólica. Antes do Estado promover uma violência física, ele promove uma violência simbólica. Isso aparece, por exemplo, quando uma campanha política ganha notoriedade ao focar o problema da cidade no problema da invasão simbólica da pichação e do grafite, que é justamente um não reconhecimento das formas culturais que são periféricas”. Desse modo o combate à pichação como estratégia política seria uma maneira de invalidar a cultura periférica ou, nos termos de Rancière, dar ao pobre apenas a possibilidade de compreender a linguagem, mas não de produzí-la.

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