Google Street View contribui para compreensão da “cracolândia”

Ferramenta soma-se à observação face-a-face como mais um recurso de investigação científica

Práticas populares e usos diversos do espaço em região da Alameda Dino Bueno próximo a Rua Helvétia. Foto: Google Street View, 2014

A intervenção da prefeitura de São Paulo realizada em maio deste ano na chamada cracolândia trouxe mais uma vez este espaço aos olhos do grande público. Passados cerca de 8 meses da ocasião, nada parece indicar que “a cracolândia acabou”, como chegou a dizer à época o prefeito João Dória.

Muitas das narrativas e olhares que surgem em ocasiões como a suscitada pela ação da prefeitura, contudo, reforçam uma mesma imagem estigmatizada sobre o que a cracolândia é: um lugar de degradação e conflito permanente entre usuários de drogas e agentes do poder público.

É justamente em busca de compreender melhor esse cenário e sua diversidade que surgem olhares como o dos antropólogos Heitor Frúgoli e Bianca Chizzolini. Frúgoli é professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, tendo orientado Chizzolini em seu mestrado.

Partindo dos trabalhos etnográficos desenvolvidos desde 2007 na região pelo Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade (Geac), os pesquisadores procuraram articular um trabalho de longo prazo com uma nova ferramenta de observação, o Google Street View. A experiência resultou num artigo na Revista GIS (Gesto Imagem e Som, vol.1, n.2, 2017), publicação ligada ao Departamento de Antropologia.

Tal proposta é fruto da integração dos trabalhos do Geac com o projeto Plataforma São Paulo (NAPSP), que acabou não implementado – o projeto visava pensar a relação entre textos etnográficos, mapas e imagens. O uso da tecnologia surge então como novo recurso para que os pesquisadores enfrentem uma questão fundamental: como observar e falar sobre um lugar que está sempre em movimento e transformação?

Territorialidade itinerante

Um fenômeno como a cracolândia pode ser muito difícil de observar, já que está sempre sujeito a mudanças e movimentos. Considerando isso, os antropólogos adotam um termo particular para definí-la: uma territorialidade itinerante.

As próprias intervenções do poder público na região, para além de seus objetivos próprios, produzem o deslocamento desta territorialidade: “Quando os usuários de crack se deslocam, todo um conjunto de coisas, objetos, dinâmicas e relações que eles compartilham os acompanham”, diz Chizzolini.

Em suas observações, os pesquisadores procuram justamente notar os vários participantes deste cenário e como vivem ali: os usuários de crack, entidades que trabalham com eles, moradores da região, frequentadores da cidade, forças policiais. Todos são sujeitos que constituem esse território, afirmam. Há, portanto, muito mais do que uma polaridade entre o Estado e os usuários de crack.

O acervo de imagens produzidas pelo Street View podem ser consultadas no aplicativo do serviço ou próprio site do Google Maps. Foto: Walter Baxter © (cc-by-sa/2.0)

É aí que entra o Street View. O serviço de fotografias constitui-se num mapeamento fotográfico das ruas de diversas cidades do mundo. É feito com um carro em cujo teto uma câmera vai fotografando em 360 graus. As imagens são renovadas com certa periodicidade, dependendo do local.

Como afirma Chizzolini, uma das principais vantagens de se usar as imagens do serviço foi “ampliar o intervalo de tempo da observação etnográfica” e com isso “verificar a continuidade e interrupção de fenômenos que já havíamos observado na etnografia face a face nos últimos anos”.  

O fluxo no tempo

Um dos locais cuja história pode ser percebida é a do cruzamento da Rua Helvétia com a Alameda Cleveland. Este seria um dos pontos de concentração de usuários, o chamado fluxo, o que também traria intensificação da vigilância policial.

Tal concentração em parte se explica pela instalação nas proximidades de equipamentos destinados aos programas municipal e estadual voltados aos usuários de crack: o “De Braços Abertos” e o “Recomeço”, surgidos em 2013 e 2014, respectivamente.

Em março de 2014, um pequeno grupo de usuários começa a se estabelecer no local, processo que se intensifica nos meses seguintes. Já em maio de 2015, marcando o histórico de intervenções do poder público, violenta ação policial visaria desalojar o fluxo. Não foi o que aconteceu.

Além desta dinâmica, as imagens do Google permitem observar práticas populares diversas no território que constitui a cracolândia. Numa das imagens da famosa alameda Dino Bueno, perto da esquina com a rua Helvétia, há lojas funcionando, pessoas jogando cartas e passeando. Como ressalta Frúgoli, os muitos usos dos espaços ao longo do tempo mostram que não é possível construir um único olhar.

Demolido em 2010, prédio da antiga rodoviária da Luz é outro espaço de transformação marcante. Acima a pequena imagem de imagem de 2014 se sobrepõe ao mesmo ponto de vista no ano da demolição. Foto: Google Street View 

Choque de imagens

O uso de fotografias é uma poderosa ferramenta na construção de narrativas e na formação do olhar. O problema é quando tais produções reiteram uma mesma forma depreciativa de se perceber um espaço.

No caso da cracolândia, apontam os antropólogos, isto ocorre na medida em que  a vulnerabilidade social pode tornar-se um espetáculo. E isso tem consequências bastante concretas em como as pessoas pensam sobre os espaços.

Chizzolini conta ter notado essas consequências em sua pesquisa de mestrado  sobre associativismo civil e requalificação urbana no centro de São Paulo. Na ocasião, a pesquisadora acompanhava reuniões do Conselho de Comunitário de Segurança do estado de São Paulo, órgão onde se reúnem membros da sociedade civil e diferentes representantes do poder público. O tema da cracolândia era frequente, assim como as sugestões sobre o que fazer a respeito.

“As imagens de uso de substâncias químicas, roubos, furtos e miséria propagados por essa abordagem espetacularizada da grande mídia gerava, por parte dos representantes da sociedade civil ali presentes, muito mais um pedido de intervenção policial direta que abordagens terapêuticas ou assistenciais. Isso só agravava o cenário de tensão que já estava posto.”

Frúgoli também ressalta como a tecnologia do Google Street View já vem sendo usada também por outros atores. A ferramenta tem permitido que veículos de mídia sustentem teses como a do surgimento de mini-cracolândias para se referir ao espraiamento do uso do crack e o deslocamento de usuários.

Entretanto, o uso indiscriminado de imagens e do próprio termo “cracolândia”, é discutível. Tal prática “não promove um entendimento mais profundo do porque esse fenômeno existe e raramente estimula um olhar empático em relação às pessoas que vivem na cracolândia” pondera Chizzolini. Desse modo, “não se incentiva um debate responsável sobre as maneiras mais adequadas e respeitosas de cuidar dessa questão”.

Vista aérea do Google Maps de 2014 de parte da região de deslocamento da cracolândia – à esquerda a estação Júlio Prestes e à direita a praça Princesa Isabel

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*