Resistências e conflitos marcam a gentrificação em São Paulo

Intervenções urbanas marcam as disputas pela cidade e os diferentes grupos e atores que a ocupam. Foto: Vitor Garcia

Por Caio Vitor, Rafael Paiva, Raphael Concli, Rodrigo Brucoli e Vitor Garcia

Não é de hoje que o centro da cidade da maior metrópole da América do Sul é associado à pobreza, violência e drogas. Ao mesmo tempo, porém, a cada ano se veem novas iniciativas que visam agir diretamente nessa região, por meio dos mais variados interesses: a revitalização de seus locais históricos, a realização de modalidades artísticas ou mesmo com a construção de grandes empreendimentos imobiliários.

A questão, contudo, está sempre permeada pelo debate a respeito da gentrificação. Isso porque, segundo alguns, essas melhorias e mudanças poderiam ocasionar o deslocamento involuntário da população que atualmente vive nessas regiões. Algo que já foi constatado em outras ocasiões em diversos países do globo.

Algumas imagens já se tornaram ilustrações clichês desse processo em grandes cidades como Nova York, Berlim, Londres: um jovem de barba saindo com sua bicicleta dobrável de uma nova rede de cafeterias onde passou a tarde trabalhando, enquanto comerciantes locais vendem o ponto do comércio que mantinham há décadas no bairro.  

Mas a gentrificação é mais plural e complexa do que isso. E em São Paulo assume contornos particulares, envolvendo ambiciosos projetos de revitalização do centro, muitas vezes questionados por sua lógica higienista em relação à população mais vulnerável dessas regiões.

A dinâmica da gentrificação

O termo gentrificação surgiu na década de 1960, em Londres, e advém da expressão inglesa gentry, que representa as pessoas ricas ligadas à nobreza. O termo, cunhado pela socióloga Ruth Glass, surgiu de suas observações das dinâmicas populacionais na capital inglesa. Naquela época, pessoas de classes mais abastadas passaram a migrar para bairros que antes eram predominantemente habitados pela classe trabalhadora mais pobre.

O processo fez com que os custos de se viver nesses locais aumentassem consideravelmente. Logo, com o incremento dos preços de moradias e do custo de vida, essa população acabou indiretamente sendo expulsa dessas regiões. A mudança, além disso, trouxe consigo uma série de transformações na própria estrutura desses bairros, que perderam seu caráter anterior.

“Esta transformação decorre dos usos mais ‘precários’, tais como cortiços, mercados, bares, comércio local, para usos mais ‘sofisticados’: lofts, ateliers, redes de supermercados, restaurantes e bistrôs gourmet e grandes marcas”, explica o arquiteto Guilherme Petrella, professor da Universidade São Judas Tadeu e da Escola da Cidade.

Justamente devido a essas especificidades, o processo de gentrificação, olhado rapidamente, se aproxima e muitas vezes se mescla aos projetos de revitalização urbana. A diferença, contudo, é que o primeiro está atrelado aos interesses imobiliários, enquanto a revitalização pauta-se em demandas sociais específicas. Logo, ainda que em alguns casos as obras urbanas se justifiquem pelo ideal de beneficiarem a todos, esses projetos não raro são pensados com foco especial nos interesses imobiliários e com objetivos especulativos.

O novo sempre vem

No caso de São Paulo, um dos exemplos mais emblemáticos levantado por pesquisadores da área é o caso do bairro da Vila Madalena. O mesmo vem ocorrendo na região da Santa Cecília e também pode ser notado no projeto chamado “Centro Novo”. “Ali [no projeto Centro Novo] está a fórmula bem conhecida: a presença de ‘edifícios icônicos’ – uma arquitetura de forte apelo midiático -, os espaços de ‘economia criativa’, com um ônibus ‘moderno’ que vai circular por pontos turísticos, em um centro já amplamente provido de transporte coletivo”, comenta o arquiteto e pesquisador Paolo Colosso.

Santa Cecília é um dos novos focos de gentrificação em São Paulo. (Foto: Raphael Concli)

Ainda que o cenário descrito possa parecer com o que se vê em outras grandes capitais do mundo, a maneira como a gentrificação ocorre entre países centrais e emergentes segue caminhos bem particulares. Colosso ressalta que “a diferença fundamental reside na violência necessária para conseguir realizar tais projetos. Como aqui as contradições são mais agudas, a pobreza é massiva e precariedade visível, despeja-se um número de pessoas, violam-se direitos humanos, dispendem-se montantes de verbas públicas em operações cujo retorno é estranho ao grosso da população”.

A forma como se justificam essas intervenções urbanas é também algo a ser notado, comenta o arquiteto.  “A gentrificação é uma externalidade de operações urbanas nas quais se envolvem o Estado e grandes players do mercado”. Externalidade, no linguajar corporativo, diz respeito às consequências inevitáveis a um bom negócio, explica.

Não à toa tantos desses projetos abraçam a ideia de que estão promovendo uma renovação ou uma revitalização: “A meu ver esta é a forma mais perversa, porque vem amparada por um discurso oficial, com repercussões midiáticas e de marketing. É uma narrativa da modernização que consegue apoio na opinião pública, ocultando dessa equação a limpeza social, se valendo da criminalização da pobreza, além da já sabida remoção de moradores e do comércio local”.

Patrimônio histórico

Os projetos de revitalização urbana, em muitos casos, tendem a focalizar os bairros mais centrais das cidades, devido às facilidades de acesso e por já contarem com uma complexa infra-estrutura, ou locais com um rico patrimônio histórico e turístico. Dessa forma, ainda que em determinadas ocasiões o objetivo não seja beneficiar o capital especulativo, as obras acabam gerando por si só um processo semelhante à gentrificação, já que com a valorização do local, a população originária não consegue mais se manter ali.

Essa valorização dos centros urbanos é uma tendência que pode ser observada desde os anos 60 e 70, comenta Colosso. Mas agora com uma particularidade: “a valorização do solo urbano por meio da promoção da cultura, a animação cultural, não é mais uma iniciativa de pequenos grupos boêmios, mas também uma estratégia deliberada do poder público em retomar uma atmosfera cosmopolita das grandes cidades.” Nesse interesse reside também a percepção do centro como área com grande potencial de mercado, diz o pesquisador.

De acordo com Georgia Patrícia Ferko, professora da Universidade Federal de Roraima, o mercado imobiliário sabe escolher quais as áreas que devem ser valorizadas. Logo, com o apoio de grupos de interesse, passa-se a destacar o abandono dos imóveis trazendo como solução novas formas de uso e de função, dentro as quais a revitalização de prédios históricos. “Nessa arena temos uma enxurrada de discursos, sendo que o preservacionista pode ficar mais forte, destacando sempre a ideia do legado cultural.”

A pesquisadora salienta que, por outro lado, há registros de que esses mesmos órgãos voltados à preservação do patrimônio nacional permitem ou são coniventes com modificações nos imóveis além do que é permitido na lei. “Temos acompanhado um processo de flexibilização das regras de preservação em grande escala. Com isso, o patrimônio cultural acaba ficando à mercê dos interesses econômicos, que não necessariamente está relacionado com o interesse coletivo, o que fragiliza as políticas de preservação”, completa a arquiteta e urbanista Simone Gatti.

Vale do Anhangabaú, que separa as regiões da Bela Vista e Santa Cecília, está no limite entre regiões marcadas pela gentrificação. (Foto: Raphael Concli)

Nesse cenário, em vários locais do Brasil, percebe-se uma valorização dos perímetros ao redor das áreas históricas após processos de revitalização. Esse processo acaba por sua vez não apenas afastando a população que antes vivia no local, mas também gerando perdas dos costumes e das culturas que havia antes ali. “Isso contribui para uma certa perda simbólica dessa área cultural, que passa a preservar mais os prédios do que o aspecto humano e a cultura imaterial que antes havia. Neste sentido, é fato que muitos turistas vislumbram o que foi criado para agradá-los, dada a lógica que impera no processo de turistificação dos espaços”, complementa Geórgia.

Além disso, de acordo com Simone Gatti, a preservação cultural representa a história e a memória da cidade. Logo, ela é importante para o planejamento, não podendo jamais ser desconsiderada. “Não é apenas o espaço construído que precisa ser visto como patrimônio, mas também os saberes, os usos, as formas de vida que se constituem nos lugares. Por isso a compreensão da cidade existente é tão importante. Não podemos apenas preservar os bens tombados e demolir toda a cidade que está em volta.”

A pesquisadora aponta que é possível aliar preservação com inclusão. Para isso, basta inserir os moradores e trabalhadores locais nas intervenções pretendidas e pensar em formas de mantê-los no local. “Em áreas sujeitas à valorização imobiliária, fornecer casa-própria para moradores muito vulneráveis é o mesmo que destinar subsídio público para a classe média, já que o mercado fará com que as habitações sejam vendidas rapidamente.”

Na cidade de São Paulo, especificamente, a retomada do centro, região de vários prédios com rico valor histórico, foi realizada em um primeiro momento pelas camadas mais populares. Contudo, esse retorno se deu em condição de acentuada precariedade, através do uso de unidades habitacionais em cortiços ou favelas e de empregos informais e irregulares.

O arquiteto Guilherme Petrella salienta ainda que “esta retomada beneficiou uma certa dinâmica econômica presente nesta região, intensificada na região da Luz e arredores, seja o mercado de aluguel dessas unidades habitacionais ou comerciais, seja pelas relações de trabalho e emprego”. Portanto, os poucos proprietários dessas habitações precárias, bem como os empregadores, que englobam setores produtivos e comerciais à alta exploração da força de trabalho, acabam também se beneficiando de tal dinâmica.

Inimigos públicos

Devido a essas especificidades, na maioria dos casos, a relação entre o público que passa a frequentar essas áreas revitalizadas e a população originária é conturbada. Ainda mais porque alguns moradores dessas regiões apoiam as mudanças em um primeiro momento mas depois não conseguem se manter no local, seja pelo aumento do custo de vida, seja pelo recebimento de propostas para vender seus imóveis, que naquele momento são atrativas. “Entretanto, quando se mudam para as periferias, percebem e sentem na pele as consequências da perda ou ruptura dos laços afetivos que se formaram nesses espaços. Além de outras perdas, tal como a dificuldade de voltar ou visitar a área, agora ‘protegida’”, explica Georgia.

Guilherme Petrella alerta ainda que, nesse processo, muitos projetos adotam  a lógica de que “essa população entrave deve ser substituída para que a marcha da valorização imobiliária se desenvolva, diminuindo-se as resistências”. Para isso, segundo o pesquisador, normalmente é construída também a imagem de um inimigo público, que acaba por estigmatizar e criminalizar parte ou a totalidade da população trabalhadora. Essa atitude é tomada visando agradar a opinião pública que poderia questionar a parcialidade das políticas adotadas.

Mural na Cacrolândia de São Paulo mostrando retratos de moradores da região. (Foto: Vitor Garcia)

“Assim, cracolândia, sem-teto, sem-trabalho, imigrantes, trabalhadores informais e irregulares, são reconhecidos como se fossem os agentes da degradação espacial e social, podendo – e às vezes mesmo devendo – ser eliminados, na medida em que são representados como sujeitos do desvio padrão social.”

O arquiteto expõe, no entanto, que ao mesmo tempo em que esses grupos sociais marginalizados são reconhecidos como o inimigo público, sua presença nestes espaços não é apenas tolerada, mas também instrumentalizada. Por serem reconhecidos como desviantes, então “essa população acaba sendo manuseada por estratégias que seriam concebidas como impopulares, injustas, desumanas (‘eles são zombies, não são humanos’), que são apropriadas por interesses político-econômico particulares.”

Gentrificação incompleta

No caso do centro de São Paulo, em especial à região próxima ao bairro da Luz, percebe-se que o processo de gentrificação não se realizou completamente. Isso porque “o mercado imobiliário não se interessou pela região dado que o risco de bloqueio do processo de valorização superava as garantias que o Estado fornecia a partir dos fundos públicos, da legislação especial, da isenção fiscal”, explica o arquiteto Guilherme Petrella.

Ele relata que isso ocorreu devido à forte relação de dependência do mercado imobiliário frente à instrumentalização do Estado. “O que aconteceu aqui foi a implantação de edifícios culturais públicos, que desejavam ser pilotos de uma valorização imobiliária mais extensiva. Contudo, são edifícios que funcionam apenas como enclaves urbanos, apartados da reestruturação urbana como um todo, na medida em que sua ação se restringe às fronteiras do próprio lote.”

Frente a isso, apesar da qualidade cultural dos projetos implementados, nota-se que a noção de cultura a eles associada restringe-se a uma modalidade destinada a populações de renda mais concentrada. Isso implicaria, portanto, no próprio questionamento do aspecto universal de cultura que muitas destas políticas públicas culturais defendem ter.

Um caso emblemático nesse sentido, levantado pelo arquiteto, é o caso da Sala São Paulo, localizada próxima à região da Luz. “A despeito da extrema qualidade que sua programação cultural possa oferecer, a Sala se relaciona com a cidade e com o entorno imediato negativamente, como se fosse um ‘apesar de você’, restrita aos seus muros, guaritas e catracas, mas cujo ‘erudito’ fantasmagoricamente se figura como uma porta de acesso à cultura universal-particularizada da valorização imobiliária.”

Do alto da Sala São Paulo os contrastes do centro podem ser rapidamente notados. (Foto: Vitor Garcia)

O arquiteto esclarece, portanto, que podemos entender essas políticas culturais como algo pensado com o objetivo de gerar uma valorização adicional em todos os demais imóveis situados no entorno desses locais. “Como resultado, tem-se o encarecimento geral das condições de vida para aqueles que habitam a região ‘revitalizável’ e, assim, pode contribuir com a reprodução de processos de gentrificação.”

Porém, isso não se realiza plenamente no caso de São Paulo. Isso porque, segundo Guilherme, as políticas de patrimônio histórico e artístico, que tendem a congelar edifícios e espaços culturais sob o ponto de vista de uma eventual demolição para a construção imobiliária mais intensiva, também aparecem como entrave à realização desses objetivos de valorização. “A despeito do caráter fictício da valorização imobiliária a partir do cultural, o patrimônio ainda aparece como uma resistência. Não é à toa que ainda hoje presenciamos processos de desrespeito às leis de tombamento, às envoltórias de edifícios tombados, às mudanças de categorias de tombamento e, inclusive, ao destombamento de edifícios.”

O caso da Luz

A situação do bairro da Luz, localizado no centro de São Paulo, é emblemático. Isso porque em um primeiro momento se optou por essa revitalização através dos aspectos culturais. Hoje, contudo, a estratégia parece passar a ser a combinação entre a produção de unidades habitacionais, em especial as de interesse social, bem como a construção de equipamentos, serviços e infraestruturas públicas.

Isso ocorreu porque as propostas de construções culturais e públicas encontraram resistências à sua plena realização. É a situação do Complexo Cultural Luz.  “Seu projeto foi desenvolvido pelo laureado escritório suíço Herzog et De Meuron, sem licitação ou concurso, contratados por notório saber, pago com recursos públicos. Posteriormente este projeto foi abandonado pelo Governo do Estado de São Paulo e seu terreno, desapropriado pelos recursos públicos, passou a ser destinado à implementação da Parceria Público Privada (PPP) Casa Paulista, obra que está atualmente em execução”, explica Guilherme Petrella. O arquiteto aponta que essa mudança sinalizaria, portanto, um deslocamento do âmbito cultural para o nível da habitação de interesse social como meio valorização imobiliária mais efetiva.

Para ele é significativo, portanto, que o programa Casa Paulista destine 80% de suas futuras unidades à população que trabalha no centro e apenas 20% destas unidades à população que mora no centro. “Uma precariedade que é acentuada na medida em que a população vulnerável, residente e trabalhadora da região, que está lá localizada em função de relações precárias, de moradia e emprego, não conseguir acessar as políticas públicas em função da impossibilidade de comprovação de emprego, de renda, de moradia.”

Esquina da Alameda Cleveland com Rua Helvétia, uma das regiões onde concentra-se a vulnerabilidade social e o choque de intervenções urbanas. (Imagem: Google Street View – 2017)

Segundo a urbanista Simone Gatti, ainda que a nova intervenção na região siga um viés habitacional, acaba não incorporando as famílias de grande vulnerabilidade residentes em cortiços. Além disso, ela explica que embora a Prefeitura tenha formado um Conselho Gestor para que a população participe da elaboração do projeto, o governo municipal apresentou para a população apenas a PPP como alternativa habitacional. O Conselho foi formado após uma Ação Civil Pública movida pela Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público de São Paulo, já que se tratava de uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) com a obrigatoriedade da formação do Conselho.

“Ou seja, o projeto implica em casa própria, com pagamentos de mensalidades, condomínios e taxas de serviços públicos, para uma população extremamente vulnerável, em que muitos possuem renda inferior a 1 salário mínimo. Há, ainda, nas quadras uma grande concentração de imigrantes, ciganos e dependentes químicos, ou seja, uma diversidade social que não se enquadra no projeto homogêneo proposto pela prefeitura.”

A arquiteta expõe ainda que, como resposta, está sendo desenvolvido o “Fórum Aberto Mundaréu da Luz”, uma iniciativa popular formada por urbanistas, universidades e entidades sociais atuantes na área. “O Fórum tem o objetivo de desenvolver um projeto alternativo para a região, planejado de forma colaborativa com os moradores e trabalhadores, incorporando as especificidades locais, os desejos e necessidades de quem vive e trabalha na área”, explica Simone.

A resistência do Bixiga

“De certa maneira, o Bixiga sempre foi um bairro que sofreu tentativas de gentrificação”, explica Eribelto Castilho, doutor em história e um dos membros do Instituto Bixiga – pesquisa, formação e cultura popular. Com crianças jogando bola na rua, idosos conversando na calçada e pequenos comércios familiares, o Bixiga manteve-se como um bairro popular em meio à cidade, mas sua história é marcada pelas intervenções que tentaram “enobrecer” o centro da cidade. A resistência a este processo pode ser vista inclusive no nome, pois oficialmente a área que compreende o Bixiga é chamada de Bela Vista.

Uma longa trajetória de apagamentos demonstra as tentativas de esconder a origem popular da região. Em 1865 o largo do Bixiga foi renomeado como largo Riachuelo. Embora não tenha vingado, anos depois o nome praça das Bandeiras, vingou, e, em 1996, o terminal Bandeira é construído sobre o antigo largo. No início do século 20, quando os barões do café fazem pequenos lotes populares, eles entram com um pedido para modificar o seu nome para Bela Vista, aludindo à visão que se tinha do morro da rua dos Ingleses. Antes mesmo da mudança legal, o nome Bela Vista já começa a ser utilizado na documentação oficial, marcando esse desejo das elites de que o bairro indígena, negro e operário se integrasse ao contexto cosmopolita da Belle époque paulistana.

Estando ao lado do triângulo histórico a partir do qual a cidade de São Paulo se desenvolveu, a história do Bixiga permite entender a história da cidade. A primeira presença do bairro foi da população indígena, que vivia  às margens do rio Saracura, do rio Itororó e do córrego Bixiga, hoje todos canalizados. A junção desses três rios dá origem ao rio Anahangabaú, também canalizado, mas vivo sob o solo do vale.

Na primeira planta da cidade, de 1810, vê-se o triângulo histórico demarcado pelas irmandades de São Francisco, Carmo e São Bento. Como animais não podiam entrar no centro, os tropeiros os deixavam nos rocios. Entre eles estava o rocio do Bixiga. (Fonte: DPH. Imagem disponibilizada pelo Instituto Bixiga)

A presença de muitos rios levou a outra ocupação do território, a negra. Eribelto explica que o mercado de escravos de São Paulo ficava no largo do Bixiga, onde hoje está a praça da Bandeira. Quando conseguiam, eles fugiam pelo rio Anhangabaú, chegando ao rio Saracura. “Devido ao fato de ser rota de fuga, há registros históricos de pedidos para que a Câmara fechasse a passagem do Anhangabaú para o Saracura”, explica. No século 19, surge o quilombo Saracura, próximo da atual praça 14 Bis. O quilombo urbano é uma das principais marcas da presença negra no Bixiga.

A paisagem do bairro, entretanto, se modifica com a chegada do café. Sob influência das políticas higienistas e com o surgimento da Cantareira, que passa a levar água encanada para a população, os rios do Bixiga, que abasteciam a cidade gratuitamente por meio das fontes, passam a ser pichados como origem de doença, e começam a ser canalizados. Além disso, São Paulo passa por um momento de especulação imobiliária, e barões que possuíam propriedades no bairro fundam loteamentos urbanos populares. Em bairro próximo ao centro da cidade que já contava com alguma estrutura urbana, os loteamentos atraem imigrantes italianos para a região, levando a população negra que estava lá anteriormente a se deslocar para cortiços.

Em 1930 o plano de avenidas de Prestes Maia, que propunha a integração e expansão da malha urbana da cidade, busca promover a higienização do bairro. Edilberto comenta que “existem falas do Arthur Saboia, que é um dos engenheiros-chaves dessa estrutura, em que ele diz claramente que quando o rio Saracura for canalizado, além de matar a subsistência da população que vive na região, ela será expulsa.”

Edimilsom comenta que essa expulsão de fato ocorreu, e a população negra que habitava às margens do Saracura migrou para a Barra Funda, onde surgiu a escola de samba Camisa Verde e Branco. Outra parte foi para um loteamento que estava começando a ser construído, o Peruche. “Muitas escolas de samba que existem hoje têm origem no Bixiga, porque foram criadas por essa população expulsa pelo Saboia que queria fazer uma limpeza do bairro.”

Registros do Largo do Bixiga, atualmente conhecido como Praça da Bandeira, ao longo de 39 anos. Os projetos de modernização da cidade, como o Plano de Avenidas, de Prestes Maia, alteraram a paisagem urbana substancialmente. (Fonte: Arquivo Histórico Municipal. Imagens disponibilizadas pelo Instituto Bixiga)

A sede da Vai-Vai, nesse sentido, é “um ponto de resistência dessa população negra”, de acordo com Eribelto. Recentemente a escola quase teve sua sede desapropriada pois “a estação do metrô ia passar lá, onde é a sede da Vai-Vai. A escola insistiu que não tinha sentido sair daquele território e conseguiu fazer com que o metrô desviasse”. A sede da Vai-Vai está na região onde, no século 19, se localizava o quilombo Saracura.

Para Edimilsom e Eribelto Castilho, os projetos urbanísticos para a avenida 9 de julho são emblemáticos, pois se vinculam todos a uma tentativa de apagamento da população negra que vivia no quilombo urbano. A primeira dessas tentativas se deu com o plano de avenida de Prestes Maia, que começa com a construção da 9 julho, considerada por Eribelto, “um marco desse plano de gentrificação da cidade”.

De acordo com o historiador, é “por isso que o Dória, não sintomaticamente, fez a sua primeira ação como prefeito vestido de gari na 9 de julho. É como se a burguesia que foi para os Campos Elíseos, para o Higienópolis, depois para Paulista City, agora estivesse voltando, querendo tomar o centro da cidade, como a Porto Seguro está fazendo.” Cerca de 80 anos depois do plano de avenidas de Prestes Maia, a história se repete, com mais um projeto urbanístico totalizante, como o Cidade Linda, que busca “enobrecer” a cidade por meio do apagamento da existência e resistência popular.

Por isso o Instituto Bixiga desenvolve uma série de atividades que buscam reforçar a cultura popular e a memória do bairro. Oferecendo cursos sobre a história da cidade ou de bairros como Bixiga e Bom Retiro, que sofrem com planos de gentrificação, o Instituto promove a resistência a políticas públicas que buscam apagar a memória da cidade. Além dos cursos, o Instituto esteve envolvido na produção de três webséries, Bixiga Existe, Retiro Retratos e Parada Centro, todas promovendo uma perspectiva popular da cidade, para além da especulação imobiliária. A websérie Parada Centro estreou na segunda semana de dezembro, mas já tem o seu conteúdo na íntegra na internet.

Sílvio Santos vem aí

Além de ser um exemplo de como o processo de urbanização de São Paulo buscou apagar a presença popular no centro da cidade, o Bixiga é palco de um dos mais emblemáticos episódios de gentrificação contemporâneo. O Teatro Oficina tem como vizinho um dos únicos terrenos livres do bairro. O terreno é da Sisan, empresa do grupo Sílvio Santos, que pretende construir três grandes espigões com duas torres geminadas, de 28 andares e 100 metros de altura.

O Oficina tem sua sede no Bixiga desde a década de 1960. Construído em um casarão típico, na década de 1980 o Teatro conseguiu um laudo para reformulação de seu espaço interno. O projeto ficou por conta de Lina Bo Bardi, arquiteta responsável pelo projeto do MASP, e Edson Elito. Última obra de Bo Bardi, que morreu um ano antes da reinauguração do Teatro, o prédio foi tombado como patrimônio estadual em 1983 e como patrimônio nacional em 2010. Em 2015, o projeto arquitetônico do Oficina é considerado o melhor do mundo pelo Observer, jornal dominical do Guardian.

Teatro oficina atua como símbolo da contracultura e resistência a gentrificação em São Paulo. (Foto: Marcio Moraes/Wikimedia Commons)

No que depender da Sisan, entretanto, o Teatro Oficina está com seus dias contados. Há poucos meses, a empresa do grupo Sílvio Santos conseguiu reverter o tombamento do teatro junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico da Cidade de São Paulo (Condephaat) e agora deverá pedir o pedir a revogação do tombamento em outras duas instâncias, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Caso vença, poderá construir o prédio mais alto do Bixiga que, por conter um terço de todo o patrimônio histórico da cidade de São Paulo, atualmente só pode ter construções de, no máximo, três pavimentos.

Para Augusto Aneas, arquiteto, integrante do Organismo Parque Augusta (OPA) e da Aliança Cosmopolítica, que reúne coletivos atuantes em diversos parques da cidade, as torres do grupo Sílvio Santos “é um dos projetos mais opressores que pude presenciar nos últimos tempos em São Paulo”. O arquiteto considera que o tombamento de grande parte do patrimônio do bairro foi, ao mesmo tempo, um instrumento que permitiu preservar os prédios e barrar o processo de gentrificação da cidade. Para ele, é graças a isso que “muito pobres moram no centro hoje. O Bixiga é um lugar que acolhe as pessoas de diversas origens ao mesmo tempo que preserva as suas características históricas e culturais”.

Aneas explica ainda que hoje arquitetos e urbanistas defendem a ideia da cidade compacta, “que é uma cidade pensada de uma forma não verticalizável, com pequenos comércios e serviços, com estímulo à urbanidade, ao cosmopolitismo, à vida urbana.” Para ele, o Bixiga sempre teve isso, sempre permitiu a convivência de diferentes universos culturais, e as torres acima do córrego do rio Bixiga colocariam essa característica histórica do bairro em xeque.

Além disso, Aneas entende a necessidade de espaços públicos como uma questão de saúde. “A Organização Mundial da Saúde fez um alerta para a crise da saúde pública de São Paulo, e eles já identificaram que esse aumento das doenças mentais está relacionado à ausência de espaços públicos”.

Diferentemente da função de consumo assumida por tantos espaços urbanos, “parques e praças são territórios de liberação dessa função. São espaços em que os pensamentos, preocupações, podem se libertar um pouco da lógica do consumo, abrindo-se a outras ideias”. Por isso eles seriam espaços fundamentais para uma boa saúde mental da população.

Além disso, os espaços públicos permitem uma experiência mais democrática da cidade. Para Aneas a experiência urbana está muito pautada na vivência de guetos, que podem ser elitistas, brancos, negros, periféricos. Os espaços públicos, nesse sentido, são  “territórios que podem permitir a convivência de todos os mundos e povos que habitam essa cidade, permitindo realizar trocas com outros mundos”. Essas trocas são fundamentais, pois expressam a riqueza da cidade, que é a sua diversidade cultural.

Para que os parques permitam esse tipo de troca, seria fundamental um outro tipo de gestão do espaço público. O arquiteto explica que os parques urbanos geralmente são grandes fatores de gentrificação da cidade. Nesse sentido, ele entende que existe uma relação intrínseca entre gentrificação e manutenção de privilégios das classes ricas. Tal relação pode ser vista em lugares como a praça Buenos Aires. “O parque Buenos Aires é um exemplo de não-parque, ele não é um espaço de convivência. Lá podem-se ver as babás dos brancos, que são negras, mulatas, e toda a estrutura do parque é usada exclusivamente pela população branca de Higienópolis e dos arredores. Ali se vê uma imagem da condição opressora da cidade”.

Babás vestidas de branco cuidam de crianças na praça Buenos Aires. Para Aneas mesmo obras como a estátua de Brecheret se inserem na lógica da gentrificação. (Imagem: Google Street View)

Transformar os parques em locais de acesso público, em que haja efetivamente uma convivência democrática entre os diversos grupos sociais da cidade é a principal motivação do OPA. E, do ponto de vista do urbanista, isso jamais poderia ocorrer por meio das Parcerias Público Privadas. Para o urbanista, a ideia de que a PPP seria um meio termo é falaciosa. “Não há um meio termo. Ou o espaço é público ou ele é privado”.

O Estado, desse modo, estaria relegando sua função política, tornando-se apenas um facilitador da economia neoliberal. Por isso, Aneas entende que é necessário serem inventadas novas maneiras de fazer política, pois “a própria ideia de representação política já não funciona mais”. As ações realizadas por diversos coletivos na cidade, como é o caso do OPA, demonstram esse desejo, que seria também “um desejo de autogestão, autonomia, de poder popular”. Esse desejo vai de encontro à política representativa em que, embora possam mudar os governantes, “tudo já está simulado, os grandes contratos já foram feitos, é tudo um simulacro de vida pública”.

Desse modo, a experiência de Aneas o parque Augusta ou atualmente com o parque Bixiga levou-o a pensar em outras formas de fazer política. Para ele, “o que se vê hoje é a política ter sido capturada do campo da vida pela instituição política, pela política institucional, que opera pelo partido e representação. O que os coletivos que atuam em favor dos parques públicos autogeridos estão dizendo é que o tipo de política que queremos ali não está no âmbito das instituições, e muito menos da representatividade, da hierarquia, dos partidos.

Smart Cities não apresentam soluções

Cidade Inteligente é um conceito que conecta serviços, infraestrutura e desenvolvimento econômico de um território por meio de bancos de dados. A ideia é amparada em planejamento e sustentabilidade, a fim do espaço trazer qualidade de vida em diferentes planos. O morador usufrui, por exemplo, de sistemas de limpeza de esgoto, reaproveitamento de águas, controle computadorizado da iluminação públicas e locais com equipamentos que geram energia quando usados.

A startup israelense Mago iniciou na cidade de Croatá, interior do Ceará, a primeira Cidade Inteligente Social do mundo. Intitulada como Laguna City, o projeto localiza-se em um importante pólo industrial do estado e foi arquitetado para suportar crescimentos populacionais nos próximos 20 anos, a fim de fomentar a economia, manter a eficiência dos serviços e evitar a criação de periferias fruto da especulação imobiliária. A iniciativa visa a redução da emissão de gases por meio de um cinturão verde ao redor dos 3,3 milhões de metros quadrados de áreas construídas.

A entrega prevista para dezembro de 2017 possui vias planejadas para suportar diferentes fluxos. O objetivo é evitar congestionamentos, garantir um trânsito seguro e evitar a formação de zonas desplanejadas. (Imagem: Laguna City)

Apesar da iniciativa atrair olhares ao inaugurar modelos que garantem qualidade de vida e evitam processos de gentrificação, o arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP e especialista em novas tecnologias do ambiente urbano, Caio Vassão, afirma que as Smart Cities ainda lidam mal os desafios contra a gentrificação de grandes cidades como São Paulo. Na visão dele, os projetos ainda não dialogam com propostas macro com o contexto urbano local. “Os planos só discutem o urbanismo com a finalidade de diminuir as deficiências dos serviços oferecidos sem resolver deficiências crônicas, como a desigualdade entre o centro e a periferia”, explica.

Ele aponta, também, que a implementação de novos serviços de inteligência na cidade contribui para valorizar a região que recebe a inovação, o que aumenta a gentrificação. Além disso, as Smart Cities partem, em maiora, da iniciativa privada, o que, na visão dele, abre espaço para o risco de grupos empresariais de especulação imobiliária decidirem o futuro da cidade.

Para ilustrar essa ideia, o Rio de Janeiro ganhou o prêmio de cidade inteligente do ano em 2013 concedido pelo Smart City Expo World Congress (SCEWC) devido aos projetos do Porto Maravilha, Central 1746 e o Centro de Operações Rio. Mais de 200 outras metrópoles, de 35 países diferentes, concorriam. O evento é uma referência internacional sobre o assunto e tem o objetivo de procurar soluções inovadoras para o desenvolvimento urbano. Entretanto, quatro anos após a premiação, o espaço da cidade assumiu contornos gentrificadores ao invés de atender ao ideal do congresso que a premiou. Segundo dados do Observatório das Metrópoles da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estima-se que mais de 200 mil pessoas foram removidas ou ameaçadas de remoção por causa dos projetos esportivos e da supervalorização de algumas regiões após a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016.  

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