Escolhas de ensino revelam religiosidade dos professores

Pesquisa mostra que a didática do professor é afetada por sua preferência religiosa desde a escolha dos materiais didáticos até sua linguagem em sala de aula

A religiosidade dos professores é oculta, mas significativa na linha de aprendizagem. Fonte: Tony Gentile/Reuters

A presença da religião no ensino regular é um dos tópicos mais discutidos quando o assunto é educação. A pesquisadora Gabriela Abuhab Valente, formada em pedagogia pela Faculdade de Educação da USP, vai além desse questionamento e coloca em discussão em sua tese de mestrado “A presença oculta da religiosidade na prática docente”, a influência que a religiosidade do educador tem em suas escolhas didáticas.

Gabriela afirma que essa interferência é significativa, contudo, naturalizada e afirma que foi justamente isso que a fez inserir a palavra “oculta” no título de sua tese. “Quando se pergunta: ‘Qual a influência da sua religiosidade na sua prática?’ Os professores falam: ‘Nenhuma’. Mas, quando é feita a observação de campo, consegue-se constatar que ela está presente”, diz.

Ela destaca a diferença dos conceitos de religião e religiosidade, baseada na teoria do sociólogo alemão Georg Simmel, que diz que a primeira é institucionalizar, enquanto a segunda, é apropriar-se subjetivamente do que é proposto pela instituição. Dessa forma, o que surge dentro da sala de aula não é, propriamente, a religião X com seus dogmas e símbolos, mas a apropriação do professor da religião que professa, havendo influência indireta dela em sua forma de ensinar.

A pesquisadora dá um exemplo dessa interferência e da naturalização do processo: “A professora faz a escolha de um livro e no último capítulo aparece Iemanjá. Sua escolha, então, é omitir Iemanjá e pedir para as crianças desenharem no fim do livro. A professora diz: ‘não tem influência da minha religiosidade na minha prática docente, mas quando observo eu concluo que sim, ela existe”. A omissão da figura de Iemanjá, que faz parte não só das religiões de matriz africana, mas também do cenário cultural brasileiro, é uma falha grave para Gabriela no que diz respeito à formação das crianças.

Outro exemplo colocado por ela foi uma situação empírica que observou na pesquisa de campo para sua tese dentro de uma sala de aula de ensino infantil em São Paulo. Uma professora usava muito linguajar religioso para se comunicar com os alunos e, além disso, sua orientação religiosa era já conhecida por eles.

Gabriela afirma que isso afetava a educação de duas maneiras: a primeira, era que a construção imaginária desses estudantes se basearia na linguagem majoritariamente religiosa dessa professora, limitando-a; a segunda era dentro da relação professor-aluno que ficaria prejudicada quando as crianças não possuíssem a mesma religião da professora. “Isso é um pouco preocupante. Eu percebia que as crianças que não se identificavam com a religião da professora eram mais afastadas”, comenta.

Como o ensino religioso aparece na legislação brasileira

Inerente à discussão que Gabriela levanta sobre a manifestação subjetiva da religiosidade do educador, está a questão de como o sistema de ensino deve encarar a religião e a conversa sobre ela de forma transparente. Ela afirma que o debate sobre a implementação do ensino religioso remonta às constituições da década de 40, sendo que a Constituição de 1988 atesta como livre aos estados da União decidirem como eles oferecerão a disciplina.

De acordo com a lei nº 9.475 de julho de 1997, o ensino religioso é de matrícula facultativa, ou seja, cabe aos pais e ao aluno decidirem se cursaram ou não o curso. Além disso, Gabriela destaca a obrigatoriedade da oferta de ensino religioso se houver uma demanda dos pais e diz que isso é um fato desconhecido para a maioria deles, “é um número pequeno de escolas que oferecem ensino religioso, porque os pais não sabem que eles têm o direito de pedir isso”, diz. 

Ela explica ainda que, diferentemente do Rio de Janeiro que impõe o ensino religioso como disciplina confessional (o estado paga professores indicados por instituições religiosas), São Paulo o apresenta como algo transversal, ou seja, os professores de ensino fundamental podem falar sobre o assunto durante a aplicação de sua disciplina própria. À partir dos anos finais do fundamental, há a contratação de um professor formado em história ou em filosofia, ou mesmo em ciências sociais,para aplicar o ensino em um horário específico. Gabriela aponta o desconforto desses professores como uma das causas da baixa adesão ao projeto: “Os professores são um pouco reticentes porque é uma disciplina difícil. Primeiro, só vai quem quer. Segundo, os alunos têm dificuldade de digerir a discussão do tema”.

Uma discussão que precisa ser iniciada nas universidades

Contudo, a oferta de ensino religioso nas escolas não é uma unanimidade entre os acadêmicos que se dividiram em dois grupos conflitantes. Há aqueles que negam a aplicação do ensino, afirmando que isso fere a laicidade do Estado, além de que os professores não seriam neutros e não conseguiriam conciliar as diversidades religiosas dos alunos. Em contrapartida, existem aqueles que apoiam a medida, baseando-se em sua presença na Constituição e propondo atividades que trabalhem a espiritualidade nos alunos de alguma forma.

Para Gabriela, a escola é um espaço de formação crítica dos alunos e dentro dele caberia a discussão do tema religioso, que não poderia ser um tabu social. Ela dá o exemplo do sistema de ensino francês que estabelece uma divisão entre “saber” e “crença”, o primeiro referente à escola, trabalhando a reflexão racional.

Ainda nesse ponto, a pesquisadora afirma ser uma tarefa das universidades estabelecer a consciência dos estudantes de pedagogia em relação a sua religiosidade e como ela interfere em sua profissão. Ela diz que não é preciso que o professor exponha à sala de aula sua religião para que haja transparência profissional. “Talvez seja o espaço de ele acolher a religiosidade dos alunos, mas não de expor a sua própria, porque ele tem uma posição de líder, de influenciador ou formador de opiniões”, completa.

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