Abordagem manicomial ainda prejudica saúde mental coletiva

Pesquisa identifica descompasso entre condições dos pacientes e suas formas de tratamento

A cada três dias, uma denúncia de maus-tratos em instituições psiquiátricas é recebida, de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos. Imagem: Daniel Marenco/Folhapress

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), referentes ao ano de 2015, 322 milhões de pessoas no mundo apresentam depressão, sendo o Brasil o País com maior prevalência da doença na América Latina. Além disso, 9,3% da população brasileira sofrem com ansiedade. Entretanto, a forma como tais patologias são tratadas pela Saúde Coletiva não condiz com o esperado.

De acordo com o pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP Thiago Marques Leão, o Campo da Saúde Mental Coletiva no Brasil não acompanhou as mudanças sociais que desencadearam novos transtornos psicológicos. “Percebi que o descolamento do campo se dá por um enraizamento às formas históricas de uma psiquiatria centrada no manicômio/hospital psiquiátrico, em formas de adoecimento restritas à pobreza (baixa renda e escolaridade) e à exclusão, as formas de família e trabalho que eram típicas de outro momento histórico, mas que não correspondem mais à realidade social.” Em seu estudo, Marques analisou publicações em revistas científicas entre os anos de 1976 e 2011.

Conhecido como “holocausto brasileiro”, o problema das instituições de internação psiquiátrica vem desde a independência do Brasil em relação a Portugal. Os manicômios acomodavam de maneira degradante e contra os direitos humanos centenas de pessoas que eram internadas sob o pretexto de “loucura”. Lá, sem um tratamento psiquiátrico adequado, elas ficavam confinadas e excluídas da sociedade com, muitas vezes, falta de higiene, alimentação e leitos. Um caso célebre é o Hospital Colônia de Barbacena, em
Minas Gerais, fechado em 1980.

Nessa mesma época, se iniciou no Brasil o movimento de reforma psiquiátrica, que pretendia desinstitucionalizar o tratamento e torná-lo mais efetivo e humanitário. Com a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica, em 2001, a proposta era fechar os hospitais de internação, substituindo-os por uma malha de cuidado, que envolvesse a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), constituída por Unidades Básicas de Saúde (UBS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), hospitais com tempo curto de internação e unidades de emergência.

Entretanto, Marques afirma que essa reestruturação não tem sido efetiva e que ainda existem muito problemas, principalmente em relação às chamadas “comunidades terapêuticas”. Estas, apesar de amplamente reconhecidas pelos maus-tratos, tortura, violações aos direitos humanos e perspectiva segregante, foram incorporadas à RAPS em 2011. “Além disso, as políticas seguem com subfinanciamento e sendo privatizadas, o que traz implicações práticas bastante problemáticas para o cuidado psicossocial”, explica.

Para o pesquisador, a raiz desse problema é que o atendimento público para a saúde mental ainda não leva em consideração aspectos típicos da sociedade moderna que podem desencadear transtornos psicológicos, descritos por ele como “individualização”. “É um conceito muito preciso, um processo de desconstrução das formas sociais típicas da sociedade industrial e a emergência de novas formas sociais que se abrem para escolha individual e, simultaneamente, impõem ao indivíduo que se responsabilize pela construção de suas biografias”, diz.

“Por um lado, somos libertados das amarras da sociedade industrial. A mulher se liberta dos papéis tradicionais de mãe e esposa, o Estado reconhece novas formas de família, se torna mais fácil a dissolução de casamentos. Por outro lado, cada vez mais sentimos como se toda contradição e risco social fosse nossa culpa individual e fosse nossa responsabilidade lidar com isso”, completa Marques.

Ele ainda afirma que esse processo relaciona a dicotomia entre os desejos de criar uma vida própria e independente e formar laços de relacionamentos profundos com outros indivíduos. Por conta disso, em sua opinião, a abordagem psiquiátrica também deve se adaptar.

Outra grande dificuldade acerca da saúde mental é o preconceito. O pesquisador afirma que esse estigma nasce da associação histórica incorreta da “loucura” com a periculosidade. “Eles são um reducionismo e uma estereotipia, portanto falsos por definição. A generalização e o receio com que hoje lidamos com a depressão e o imaginário suicida torna muito difícil tratar de forma eficaz o fenômeno. Isso está na raiz da incapacidade de lidar, por exemplo, com o sofrimento entre estudantes de graduação e pós-graduação. Vemos como as instituições estão despreparadas e como os professores têm receio de sequer falar sobre o assunto”, explica Marques.

Contudo, ele reconhece grandes avanços na representação no indivíduo com doença mental na sociedade. A mudança de nomenclatura de “psicose maníaco-depressiva” para “transtorno bipolar”, por exemplo, ajuda na quebra do preconceito. Ele ressalta também que a evolução da tecnologia e da medicina ajuda a entender melhor o funcionamento do cérebro e a realidade psíquica.

Além disso, a cultura tem ajudado nesse processo de aceitação com a inserção de personagens neuro-atípicos em filmes, séries e livros. Um exemplo é o seriado Atypical, da Netflix, que retrata a vida de um adolescente autista. Outro caso é o HQ A Diferença Invisível, o qual conta a história de uma jovem portadora de Síndrome de Asperger. De acordo com Marques, esses elementos têm ajudado na construção de uma identidade neuro-atípica que ultrapassa o conceito de diagnóstico, tornado o transtorno uma característica da personalidade do indivíduo e diminuindo, portanto, a discriminação.

Para a resolução desse descompasso, o pesquisador afirma que não há respostas simples, mas um processo a ser realizado. “É imperativo que se amplie o olhar para além dos modelos da psiquiatria manicomial e da exclusão e miséria, para que assim sejam reconhecidas as novas formas sociais próprias da sociedade contemporânea, as novas formas de sofrer e sentir, de amar e se relacionar, de produzir, consumir, buscar prazer e realização, ser e estar no mundo, de relacionar-se consigo e com outras pessoas.”

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*