Profissionais da saúde explicitam racismo no SUS

Relatos colhidos para estudo da Faculdade de Saúde Pública mostram como a raça opera na saúde

Racismo atua no modo como pacientes são recebidos, têm suas queixas interpretadas e no seguimento que recebem. Foto: Pixabay

“Se eu não sei o que é raça, como posso trabalhar a questão da saúde da população negra e do racismo e como ele afeta a saúde das pessoas?”, questiona Mônica Mendes Gonçalves, que defendeu a dissertação de mestrado Raça e saúde: concepções, antíteses e antinomia na atenção básica na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. Com base em entrevistas de profissionais da Sistema Único de Saúde (SUS) e análise dos discursos expressados, a pesquisadora concluiu que esses profissionais mudam a conduta de acordo com a cor do paciente e não sabem o que é “raça” de uma perspectiva sociológica. Em outras palavras, os profissionais da saúde entrevistados demonstraram não saber o que falavam em relação à saúde da população negra.

Além da análise do discurso, também foi utilizada uma metodologia da Psicologia Social conhecida como ”campo-tema”, que tem como princípio a ideia de que o campo não tem a ver com o lugar em que a pesquisa se desenvolve, mas sim, com uma construção do sujeito em relação aos outros sujeitos que estão implicados no processo de pesquisa.

Em uma pesquisa qualitativa, Mônica conversou com onze profissionais da saúde: sete médicos, um psicólogo, um nutricionista, uma enfermeira e uma assistente social. A intenção inicial é de que essa amostra fosse apenas de pessoas brancas, mas também havia negros.

A pesquisadora conta como conduziu a entrevista: “A gente teve o cuidado de não colocar palavras como ‘preconceito’; ‘racismo’; ‘discriminação’, entre outras, em momento algum. Embora minha intenção fosse captar esse fenômeno, eu sabia que, principalmente dialogando com pessoas brancas, há uma negação. É chato falar disso”. Por essa razão, ela começava a conversa com o pedido de algum caso com um paciente negro que tivesse marcado o profissional ou que fosse recente.

E assim, surgiram depoimentos que demonstravam, por exemplo, a concepção de raça como algo biológico. Uma médica afirmou que negros possuem mais hipertensão do que brancos. O motivo, segundo a entrevistada, seriam as artérias, que diferem entre esses grupos. Uma enfermeira disse que existem diferenças biológicas entre negros e brancos e citou como prova da afirmação a natação, em que pessoas negras seriam piores por ter “o osso mais pesado”. “Tem uma fundamentação biológica que não se justifica em medida alguma. Todos os sistemas biológicos atuais, a ciência, a genética e a biologia, já afirmaram que não existem diferenças biológicas significativas que possam ser atribuídas a diferenças do que a gente chama de raça”, explica Mônica.

Ideia antiga

A ideia de raça como algo biológico existe pelo menos desde o século XIX, quando o movimento cientificista se apropriou da ideia e afirmou que existiam, sim, diferenças biológicas entre “raças”. Resumidamente, raça como algo biológico tem como base as seguintes ideias: os grupos humanos não são todos iguais; essa diferença pode ser aferida a partir da diferença fenotípica desses diferentes grupos e povos; os grupos estão hierarquicamente colocados, numa posição de superioridade e inferioridade; os brancos são superiores em vários aspectos e essas diferenças fenotípicas reverberam na moralidade e na civilidade dos grupos, sendo os brancos “mais civilizados”.

“As pessoas estão atendendo gente preta atravessada por essa ideia e sem se dar conta. Essa crença atua no modo como elas recebem essas pessoas, como elas interpretam a queixa e no seguimento que elas dão pra essas pessoas”.

Há ainda uma ideia geral sobre o que é “ser negro”, a qual Mônica explica estar ligada à ideia do que é raça. Ela exemplifica com um caso relatado por um dos profissionais entrevistados. Um paciente negro de apenas 18 anos procurou ajuda por sofrer insônia e se sentir “mal”. Logo, identificou-se que ele estava deprimido. Mas, por ter revelado uso de drogas uma única vez, alguns profissionais entenderam que seu caso não era de depressão e sim de drogadição. A partir disso, o jovem passa a ser transferido de um dispositivo de saúde para o outro, sem nunca receber o atendimento adequado. Em uma das consultas com uma psicóloga, ela afirma que não irá mais atendê-lo por julgá-lo muito “sedutor”. Após cinco anos de transferências pela rede SUS, o paciente comete suicídio. “As pessoas entendiam que ele era ludibriador, mentiroso, não confiável, sedutor. Se a gente não entende as ideias que foram atribuídas ao negro nesse processo de construção da ideia de raça, a gente não vai entender que na verdade, esse homem foi barrado pelo racismo”.

Há mais de dez anos a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra existe como um reconhecimento do Estado de que o racismo existe, se expressa no campo da saúde e é necessário fazer algo a respeito.

Como formas de intervenção, a pesquisadora sugere o fortalecimento de sistemas paralelos de formação sobre raça. Deve-se pensar em políticas intersetoriais no setor da saúde. Isso inclui ir para as escolas e conversar com crianças sobre racismo, o que também é papel da saúde.

Outro ponto é perguntar qual a raça dos pacientes no atendimento, o que já é determinação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e não é feito. “É uma coisa preciosa para o debate racial, faz com que as pessoas entendam mais de raça e que a população e os profissionais discutam juntos”.

Para Mônica, a lógica do SUS tem que ser revista. Se os princípios do SUS fossem fortalecidos, já se conseguiria um grande benefício para essas populações negras negligenciadas. “O serviço é longe, precário e não tem profissional. Se se conseguisse radicalizar a ideia de que o SUS é um dispositivo territorial e que tem que oferecer um bom serviço, isso já mudaria as possibilidades de acesso dessa população, que está territorialmente marginalizada. Fortalecer esses princípios, é combater, de certa forma, os impactos do racismo no campo da saúde”.

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