Violência contra mulher é invisibilizada por agentes de saúde

Vítimas também são responsabilizadas pelas agressões, aponta pesquisa da USP

Agentes comunitários de saúde não veem violência doméstica como questão de saúde pública. Foto: Pixabay

“Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Essa frase, conhecida e repetida em vários cantos do Brasil, rege também o pensamento de agentes comunitários de saúde ao lidarem com situações de violência à mulher. O dado é conclusão da dissertação de mestrado Violência doméstica contra a mulher: representações e práticas do agente comunitário de saúde, realizada por Adriana Miranda Ferreira, na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. A pesquisadora percebeu ainda que as mulheres são responsabilizadas pela violência que sofrem.

O estudo foi realizado em Jundiaí (SP), município com cinco Unidades de Saúde da Família. Todos os agentes comunitários de saúde dessas unidades foram convidados a participar. Eles foram organizados em cinco grupos focais, que tinham entre cinco e seis agentes. A pesquisadora utilizou a técnica de Análise de Conteúdo de Bardin. Isso significa que os relatos dos grupos foram gravados, transcritos e depois lidos minuciosamente. A partir dessa leitura, definiu-se os principais temas dos discursos, que geraram as categorias em que estão os resultados. No total, foram analisados 26 agentes comunitários: 24 do sexo feminino e dois do sexo masculino.

Boa parte dos agentes possuem a visão de que o que acontece dentro da casa da família não é “da conta deles”. Portanto, se a mulher não pede ajuda, ainda que eles percebam a agressão, não há o que fazer. Adriana ressalta que o medo de retaliação também contribui para essa invisibilização da violência contra a mulher, já que uma das atribuições necessárias ao agente comunitário é morar na comunidade. “Embora ele esteja numa posição privilegiada por ser morador e ter a possibilidade de maior vinculação, existe também o medo de retaliação. Muitos territórios são de tráfico, drogas, álcool e por aí vai. Então, os agentes acabam não querendo se expor nesse sentido”.

De quem é a culpa?

Alguns agentes afirmaram que quem sofre violência por anos já aceitou aquela condição. Os profissionais de saúde, de maneira geral, entendem que as mulheres possuem autonomia para sair dessa situação, se quisessem.

A ênfase ao vestuário feminino foi outra forma de responsabilização, utilizado como justificativa para situações de violência. Segundo uma das falas de um agente: “Muitas vezes mulheres usam roupas apertadas demais. Chegam a ser tão apertadas que ficam transparentes, marcam o corpo, marcam a roupa de baixo, e elas querem que os homens não façam nada com elas? O homem não precisa fazer, mas ela não quer receber uma cantada? Muitas vezes as mulheres não veem como se vestem”.

Os profissionais apontaram que nem sempre as mulheres têm a percepção de que aquela situação sofrida é de violência. Uma agente afirmou: “Se você não sabe que aquilo que você tá sofrendo é uma violência (…), como você vai recorrer à Lei Maria da Penha ou qualquer tipo de proteção?”

O fato é que a violência à mulher não é vista pelas unidades como uma demanda da área da saúde. Não só os agentes, mas a sua gerência, entendem que casos de violência competem ao assistente social ou ao psicólogo e não como uma atribuição deles. “Eles acreditam que a consequência da violência é uma demanda da saúde, mas não o aspecto da prevenção. Isso reflete nas ações das agentes, afinal, se elas apresentam essas representações, suas práticas serão prejudicadas”.

Ciclo da violência

Outra condição revelada é o medo de represália que as mulheres podem sofrer por seus parceiros. Há medo de ser atacada novamente ou de sair do relacionamento e as condições de vida piorarem. Mas há também o medo de reiniciar a vida. “Muitas dessas mulheres não trabalham e se você não trabalhou a vida toda, começar do zero é um desafio grande”.

Os agentes apontam que muitas mulheres que sofrem violência já haviam passado por situação parecida antes na família, apresentando um histórico de sofrimento, abusos e traumas. Ou seja, se elas tiveram pais violentos, procuram parceiros violentos, reproduzindo um ciclo.

Em busca de atenuar a situação de violência, algumas mulheres chegam a engravidar, pois assim estarão “seguras” por pelo menos 9 meses. A pesquisadora ressalta como isso é preocupante: “Interfere nas escolhas reprodutivas dessa mulher. E quais as consequências de se estar gerando uma criança nesse contexto de violência? A que ponto essa mulher chega para poder garantir a sua proteção e segurança?”, questiona Adriana.

Para os agentes, a Lei Maria da Penha e as Medidas Protetivas não têm eficácia. Segundo um profissional, “se o cara quer matar, ele mata”, pois essas legislações não impedem. “Há a fragilidade dos serviços de segurança pública, o despreparo dos profissionais pela falta de acolhimento, ética e sigilo nas delegacias, em especial. E há deficiência do judiciário em garantir a efetividade da lei”.

Mulheres chegam a engravidar para atenuar situação de violência. Foto: Pixabay

O Sistema Único de Saúde (SUS) adota como estratégia a educação permanente dos profissionais de saúde. Dentre outras medidas para enfrentar a violência doméstica contra a mulher, a pesquisadora propõe a discussão dos estereótipos de gênero na formação e capacitação dos profissionais de saúde e de segurança pública: “Não apenas os profissionais de saúde, mas também os profissionais de segurança pública apresentam muitos preconceitos, o que influencia em suas práticas e necessita ser trabalhado”.

É comum que agentes e outros profissionais confundam denúncia policial e notificação compulsória. O registro da violência através da notificação compulsória (Lei Municipal n° 8.800/2017) é obrigatório não apenas ao profissional de saúde, mas a todos os profissionais da rede da assistência. Essa confusão é uma das principais razões para a subnotificação dos casos de violência, o que dificulta a elaboração de ações.

Um caminho apontado por Adriana é a adesão ou criação de um protocolo que seria utilizado em situações de violência. “Esse protocolo de violência ajudaria a nortear as ações dos profissionais da equipe, inclusive dos próprios agentes comunitários, o que é fundamental, porque se não, cada um orienta do seu jeito e ninguém sabe como deve se proceder diante desses casos”.

Porém, a pesquisadora determina um limite para as ações dos agentes de saúde. “Não adianta pensar que ele vai ser super-heroi. Esses agentes precisam de uma supervisão de uma pessoa especializada na temática de violência, que possa dar suporte e respaldo para eles”.

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