Literatura de Cordel constitui importante patrimônio cultural brasileiro

Tradicional do nordeste brasileiro, modalidade literária apresenta características que se transformam e se conservam ao longo do tempo

Arquivo de literatura de cordel do Instituto de Estudos Brasileiros. Foto: Marcos Santos

Em setembro de 2018, o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu o cordel como patrimônio cultural do Brasil. De acordo com o professor Paulo Iumatti, pesquisador e especialista em literatura de cordel do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), esse reconhecimento é fundamental. “Isso significa muito para o uso do cordel na sala de aula, por exemplo. Esse registro possibilita que ele tenha um amparo constitucional a mais”.

Apesar de ser um importante elemento da cultura brasileira, especialmente nordestina, essa modalidade literária veio de terras longínquas. Com origem em vários lugares da Europa, o cordel foi trazido para o País por intermédio de Portugal desde o período da colonização, mas só começou a ser desenvolvido no final do século 19. “Nas províncias do Brasil, ele passou a ser publicado por volta de 1890 na forma de poesia. Se analisarmos o cordel de outros países, ele não tem essa forma predominante”.

Peleja de Romano do Teixeira com Inácio da Catingueira

Outra mudança sofrida por essa modalidade literária, ao chegar em território sul-americano, é o seu modo de distribuição. Enquanto que, no Brasil, era apenas publicado na forma de folhetos, em Portugal,  os poemas também ficavam presos em cordas finas, que eram conhecidas como cordéis, apelido que deu o nome à literatura. Entretanto, essa denominação usada atualmente só viria surgir décadas mais tarde, por volta de meados do século 20. “Foi uma referência de estudiosos ao formato lusitano. No Brasil, antes disso, era chamado apenas de folheto”.

“Essa literatura está intimamente conectada ao ambiente da oralidade, da cantoria”, conta Iumatti. Os primeiros cordelistas passavam os versos cantados para o papel. Sua arte, portanto, não poderia ser dissociada dos versos entoados por cantadores e violeiros, muitas vezes em forma de peleja, subgênero conhecido como disputa oral, em que as partes propunham desafios entre si. “No cordel, isso pode aparecer como a memória de um desafio real entre dois cantadores ou pode ser uma invenção. A peleja é bastante importante para essa literatura pois demonstra a conexão com o ambiente da cantoria”. E foi com esse gênero que a modalidade literária teve sua origem e conquistou sua expressiva projeção.

As temáticas do cordel são variadas e vão de relatos do dia-a-dia até romances de aventura. Há também os folhetos dedicados a questões religiosa, à sátira política e, até mesmo, a fábulas repletas de elementos fantásticos. “É uma pluralidade de temas. Não podemos dizer que há uma temática preponderante. O que caracteriza a literatura de cordel de fato é a sua forma”. Ela é definida por três regras rígidas: métrica, rima e oração. A métrica trata-se da quantidade de versos existentes por estrofe, de sílabas poéticas por versos e quantas delas deverão ser tônicas, sendo a métrica mais comum a sextilha – de seis versos de sete sílabas. Já a regra da rima se refere ao modo como as rimas serão construídas. Esses dois itens conferem o ritmo ao cordel. A oração, por sua vez, “é a unidade da história, a sua coerência”.

Arquivo do IEB. Foto: Marcos Santos/ Jornal da USP

Seguindo esse padrão, a primeira geração do cordel, representada principalmente por Leandro Gomes de Barros, consolidou a sua confecção. De início, os poemas eram impressos a partir de dobra de folhas. Até o princípio do século 20, as capas dos folhetos eram bastantes simples, pois apenas constavam o nome do autor, o título, e a tipografia na qual haviam sido impressos, entretanto, com o passar do tempo, imagens foram incluídas para ilustrá-las. A principal técnica utilizada era a da xilogravura – arte de fazer gravuras em relevo sobre madeira. Contudo, essas características se alteraram com o passar do tempo e a mudança de contexto onde estavam inseridas. Com a migração nordestina, os cordéis chegaram ao sudeste do País e, por volta do anos 1950, começaram a ser ilustrados de uma maneira semelhante às histórias em quadrinhos, populares nas grandes metrópoles do país.  

A passagem dos anos, além disso, foi responsável pelas mudanças no conteúdo da literatura de cordel, cuja plasticidade foi fundamental para a sua sobrevivência. Em adição às mudanças de temas, o formato de veiculação também é alterado. “As características formais se prolongam e as temáticas incorporam o diálogo com o cinema, televisão e internet, através das redes sociais. Muitos cordéis foram criados por meios do WhatsApp e outras plataformas interativas”, constata o professor.

História do Boi Misterioso de Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918)  

“Ele transforma e conserva algumas características. É uma tradição que se reinventa o tempo todo, sempre buscando interação com os novos suportes técnicos”. Ao mesmo tempo que continua a ser publicada seguindo a mesma estrutura de regras, a modalidade literária altera a sua fórmula de confecção. “A maior parte, hoje em dia, é feita pelo computador, por meios digitais. Com o cordel, sempre foi fazer as coisas do jeito mais simples e fácil”. Assim, como no final do século 19 era mais cômodo o prelo manual, hoje, é utilizada a tecnologia digital.

A acessibilidade da literatura de cordel, dessa maneira, é uma de suas principais características. Feita inicialmente por pessoas comuns, distantes dos status dos grandes intelectuais e artistas da época, ela apresenta uma linguagem simples, facilmente compreendida e, devido ao seu ritmo, rememorada. Esse aspecto ainda reflete um dos principais motivos pelos quais o cordel exprime um importante papel. “Ele traz a história da nossa sociedade, os seus conflitos, os seus sonhos, suas crenças. Há uma pluralidade de vozes. É muito fácil obter registros da classe dominante, então o cordel apresenta um universo que está à margem”.

Com o objetivo de colaborar com as pesquisas sobre o assunto, foi criado o Portal da Literatura de Cordel, que reúne dados sobre os vários acervos da modalidade existentes no Brasil. “O IEB fez parcerias com a Universidade de Poitiers e o Iphan, além de conseguir aprovação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para viabilizar a criação do Portal”, conta o professor Paulo Iumatti, coordenador geral do projeto.

 

 

 

 

 

 

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